São Clemente reedita seu enredo mais famoso criticando as próprias escolas

 

Foto: Divulgação

A São Clemente é uma exceção à regra entre as escolas do Grupo Especial: vinha fazendo visitas regulares ao Grupo de Acesso até que, em 2011, subiu e não caiu mais. Contratou Rosa Magalhães para o Carnaval de 2015 para ganhar status e experimentou o amargo gosto do julgamento que leva em conta o “peso da bandeira”. Fez um dos melhores senão o melhor desfile do ano, mas acabou num modesto oitavo lugar.

Com as viradas de mesa sucessivas e com a subida da Viradouro, a São Clemente se viu numa situação desconfortável. Ao final do Carnaval 2019, duas deverão voltar ao Grupo de Acesso e a escola de Botafogo entendeu que era uma das candidatas mais fortes. Por isso, resolveu fazer uma espécie de enredo-testamento, para expor as entranhas políticas das escolas de samba: a reedição de seu desfile mais famoso na história, E o Samba Sambou.

Assista a um trecho do desfile original da São Clemente, em 1990:

O desenvolvimento ficará por conta do carnavalesco Jorge Silveira, que havia prometido mesmo antes do desfile de 2018 retomar a veia crítica, maior marca da São Clemente desde os anos 1980, quando chegou a primeira vez ao desfile principal. A sinopse deixa clara logo no começo a intenção de trazer para os dias atuais o contexto do enredo, que era uma crítica ao excesso de mercantilização do Carnaval lá na década de 1990.

No jogo do amor e do samba não tem regras: ou se tem, depende. Cartas na mesa, mesa virada. E o amor ao samba? Ah, camarada… Tudo tem seu preço e seu apreço. Quem tem padrinho não morre pagão! O brado retumbante de 90 ecoou com tanta força que se fez profecia: E o Samba Sambou…

A referência aos eventos que levaram ao não rebaixamento da Grande Rio e do Império Serrano é escancarada. “Quem tem padrinho não morre pagão”, foi a frase infeliz do dirigente da tricolor de Caxias para vaticinar a virada de mesa, antes mesmo de a história ser anunciada oficialmente.

A escola inclusive não se exime de culpa no lamentável evento: Também cometi meus pecados. A mesa virada tem lá minha digital. Assumida. Mas peixe pequeno frita mais rápido que peixe graúdo. Tá dado meu recado.

O enredo original era uma crítica bastante pertinente aos excessos de uma profissionalização dos desfiles que deixa em segundo plano os verdadeiros fundamentos da escola de samba. Nesta “atualização”, o primeiro setor enfoca as musas, celebridades de Internet e TV que roubam espaço das passistas de fato: ‘virou Hollywood isso aqui’. A profecia feita em 1990 se cumpriu e, por isso, torna-se importante reforçar o recado!

A escola também vai chamar atenção do Prefeito da cidade, que se recusou a entregar a chave da cidade ao Rei Momo em 2017, o excesso de estrangeirismos e de gringos no samba, a distribuição farta de credenciais, o tempo exíguo de desfile exigido pelo regulamento que leva o componente a fazer cooper em vez de sambar. E o povo, pergunta o enredo: “É, esse ficou de fora da jogada. Nem lugar na arquibancada ele tem mais pra ficar. A grana entope os camarotes de sertanejo, música eletrônica e de todo tipo de som, menos o próprio dono da festa: o samba. Que mico minha gente… Olha o que o dinheiro faz!”.

Aliás, a grana também faz com que as rainhas paguem para ocupar seus postos, tomando espaço das moças das comunidades das escolas. O samba vira plataforma para autopromoção de um monte de gente atrás de 15 minutos de fama. Além disso, a vaidade de carnavalescos e destaques provoca uma briga de egos enquanto os compositores formariam “escritórios” e produziriam sambas em série, muitos deles “bois-com-abórbora”, gíria do carnaval para denotar um samba-enredo de qualidade duvidosa.

Ouça o samba-enredo de 1985 “Quem Casa Quer Casa”:

Depois de desnudar os bastidores da folia, a escola faz questão de lembrar seu DNA crítico, de denunciar as disfunções deste nosso Brasil em outros enredos, como a má índole dos políticos com o enredo sobre o boi voador, de 2004, ou o inesquecível Quem Casa Quer Casa, de 1985, sobre os déficits de moradia, o primeiro desfile da escola no Grupo Especial.

O apelo final: “Temos que segurar firme essa onda. Pelo amor que temos ao samba, vamos preservar esse “antigo reduto de bambas”, para que as gerações futuras possam ainda curtir o verdadeiro samba.”

A sinopse não permite divisar com muita clareza se os setores do desfile original vão ser reproduzidos da mesma forma, mas o enredo continua pertinente como era em 1990. As escolas, desde que ficaram famosas nos anos 1970, se ressentem da “invasão” dos famosos. Mas vivem a contradição: sem o oba-oba dos turistas e do dinheiro, perdem espaço na mídia e têm menos recursos para a manifestação cultural autêntica que representam. Outros enredos já fizeram críticas semelhantes, como o Império Serrano, em 1982.

O carnavalesco Jorge Silveira teve um desempenho satisfatório no desfile de 2018. A escola veio plasticamente bastante digna com a homenagem ao centenário da Escola de Belas Artes, ainda que algumas alegorias e, sobretudo tripés, estivessem um pouco abaixo do padrão das demais. Ele não deve ter dificuldade de se adequar a um trabalho de tom irreverente, como o desfile da Viradouro em 2017, sobre o universo infantil.

A escola vai usar o mesmo samba de 1990 e se junta ao Paraíso do Tuiuti e à Grande Rio entre as que não terão concurso de samba-enredo. Naquele carnaval, a composição foi reputada como uma das melhores do ano.

O sorteio oficial da ordem de desfile será realizado no próximo dia 17, terça. Mas a São Clemente já sabe que abrirá o desfile de segunda-feira, o que é um trunfo a mais na luta pela permanência no Especial. Faz tempo que esta posição é considerada nobre, ao contrário de quem abre domingo. A última vez que uma escola abrindo segunda-feira foi rebaixada faz mais de 20 anos: em 1997, a Santa Cruz desfilou nesta posição e caiu. Mesmo assim, foi um ano atípico em que caíram 4 escolas e ela ficou na antepenúltima posição.

Pelo que tem feito nos últimos anos, a São Clemente não merece cair e tanto nos anos Rosa Magalhães quanto em 2018 recebeu algumas notas bastante discutíveis, que a direção da escola considera injustas, dadas pelo “peso da bandeira” e não pelo que efetivamente foi apresentado.

Reveja o desfile de 2018, “Academicamente Popular”:

Vale destacar que ela será, na segunda, o contraponto da Grande Rio que desfilará no domingo com um enredo que, de certa forma, desdenha das críticas que recebeu depois da virada de mesa; algo no estilo “eu fiz mesmo, mas quem tem telhado de vidro, não atira pedras”. Um motivo a mais para a São Clemente angariar simpatia do povão da arquibancada e conseguir com os jurados décimos decisivos na briga pra se manter na elite.

13 de jul de 2018

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