Carnaval 2019 mostra o vigor das escolas de samba

Último carro da Mangueira, com a história reescrita – Foto: Dhavid Normando/ Riotur

Quem esperava uma catástrofe, escolas pobres e esvaziadas queimou a língua. O Carnaval 2019 teve mais público no Sambódromo que o passado, apresentações criativas e sobretudo uma vigorosa mensagem dada de forma coletiva pela maioria das escolas, tanto da Série A como do Grupo Especial: o samba é resistência cultural, sim. Precisou a crise para que as agremiações recuperassem sua veia reivindicadora que tem sido um traço desde os anos 1960. O reconhecimento dos jurados, dando a vitória à Mangueira não poderia ser mais simbólico deste movimento.

Enredos relevantes

O enredo de Leandro Vieira propondo que a história do Brasil passe a reconhecer personagens marginalizados que participaram de lutas importantes arrebatou a avenida. A Mangueira esteve longe de ser uma escola luxuosa. Foi mais conceitual. Profundamente artística e com uma mensagem que a maioria ali estava pronta para absorver. O samba-enredo mangueirense certamente vai ultrapassar a fronteira do carnaval e entrar para o seleto grupo daqueles que são reconhecidos a qualquer tempo.

Mangueira e Tuiuti não combinaram, mas apresentaram discursos complementares. A primeira abordando a história e a vice-campeã de 2018 com uma abordagem crítica sobre as práticas políticas do Brasil, mas feita com a picardia tão cara ao carnaval. Tudo isso contado a partir da inusitada história da eleição do bode Ioiô para vereador de Fortaleza há mais de um século. O estilo colorido, as fantasias criativas como as “coxinhas armadas” estavam presentes e o último carro trazia o bode dando um coice ladeado por celulares cheios de frases típicas de preconceito. Em cima dele, várias pessoas que são resistência como o deputado federal David Miranda. Pena que problemas com alegorias e evolução tenham tirado a escola de São Cristóvão do Desfile das Campeãs.

Último carro do Tuiuti com o deputado David Miranda e outros que militam pelas causas negra, indígena, LGBT, feminista, etc. – Foto: Dhavid Normando

Completa essa lógica, a apresentação da São Clemente, que se reencontrou com o estilo que a consagrou, o bom humor e a crítica inteligente, voltada esse ano ao próprio univeso das escolas de samba. A comissão de frente simulando uma reunião de cartolas da Liga Independente das Escolas de Samba e suas viradas de mesa vai ficar na memória, bem mais que a dos emojis da Grande Rio, que foi premiada. A estética HQ de Jorge Silveira contribuiu para a leveza. Foi de todas as 14 escolas, a mais mal julgada. Não merecia a antepenúltima posição.

Raízes culturais

Outras escolas bem colocadas como Portela e Salgueiro não tiveram condição de exibir o luxo habitual com que estão acostumados os torcedores. Mesmo assim, trouxeram enredos culturalmente relevantes. Rosa Magalhães fez na Portela um passeio pelas raízes culturais de Clara Nunes, a homenageada. Para explicar por que Clara Nunes se encantou pela Portela e seu universo era preciso entender que universo era esse, a Madureira multicultural, variada. Emocionante a comissão de frente em honra a Iansã, assim como a salgueirense em homenagem a Xangô. O fato de terem sido penalizadas pelo júri mostra uma tendência meio infantil de esperar sempre um espetáculo no padrão Paulo Barros. Não deveria ser assim, não pode ser assim.

Comissão de frente da Portela – Foto: Dhavid Normando / Riotur

O carnaval é democrático. Permite discursos divergentes. Enquanto a Mangueira exibiu o monumento dos Bandeirantes feito por Victor Brecheret pichado como protesto à participação deles no extermínio de índios, a Grande Rio passava na avenida com um carro que classificava o grafite e a pichação como exemplo de “pecados” cometidos por quem não tem moral para julgar os outros.

Pão sacro

A Unidos da Tijuca preferiu um tom “sacro”, na definição do próprio carnavalesco, para sua história do pão e seu clamor por mais solidariedade e empatia no mundo. A escola disputou uma vaga nas Campeãs até o último quesito, mas acabou se dando mal em samba-enredo, punida pelos jurados porque o seu hino, embora melodioso, refletia na letra a proposta um tanto confusa do enredo a se considerar a sinopse.

Até a Imperatriz, que normalmente passa ao largo das questões políticas, nos últimos dois carnavais vinha trazendo mensagens relevantes e este ano enveredou de vez ao contar a história do dinheiro. O fracasso de seu desfile se deu mais pela mudança radical de estética e problemas de evolução e harmonia.

Problemas de identidade

Outras duas escolas vivem problemas de identidade que precisam ser resolvidos logo. Uma é a União da Ilha. Seu enredo sobre o Ceará teve uma estética muito boa, acima da média até para o padrão das escolas esse ano. Carros grandes, caprichados. Só que precisa temperar essa nova roupagem com aquela com que o público se acostumou: a Ilha alegre, de sambas bons, fáeeis de cantar, componentes soltos. Pode ter um pouco de nostalgia nisso, é verdade. O julgamento hoje é muito cheio de nove horas. Mas a gente sempre fica com a sensação de que faltou algo quando acaba a apresentação.

Perspectiva do desfile da União da Ilha com o Padre Cícero voador da comissão de frente – Foto: Fernando Grilli / Riotur

Ao lado da tricolor, a grande decepção do ano, a Beija-Flor. Uma escola que resolve falar de si mesma e não sabe como tem um problema de identidade a resolver. A teatralização excessiva dos carros alegóricos interagindo com a pista, que ocorreu também na Unidos da Tijuca, prejudica a evolução. As duas escolas perderam pontos aí. Uma história vitoriosa como a da Deusa da Passarela não merecia este tratamento confuso. Quem são os baluartes da Beija-Flor? Quem fez a história bem sucedida da escola nesses 70 anos de vida? Quem viu o desfile não entendeu. Homenagens tímidas em fotos numa saia de carro alegórico é muito pouco!

Primas ricas

Já no caso de Vila e Viradouro, fizeram o que delas se esperava. Muito luxo e desfiles competentes. Ambas bastante parelhas e com enredos com linhas narrativas pouco sólidas. A Vila levou a pior por ter estourado o tempo em 1 minuto. A Mocidade, a outra que vai estar no sábado, ficou feliz da vida por estar pelo terceiro ano seguido no Sábado das Campeãs, mostrando uma regularidade inédita nos últimos tempos. A Mocidade está em ascensão como escola. Seus torcedores só se ressentiram de um pouco mais de sintonia com o momento. A reflexão genérica sobre o tempo pareceu um tanto deslocada num ano em que até o rebaixado Império Serrano fez críticas.

Por fim, e o Império? Ah, o Império… Essa coluna avisou lá atrás no meio do ano passado, quando a escola tomou a decisão de usar uma música de Gonzaguinha como hino. A ideia, mais do que arriscada do ponto de vista estratégico de desfile, era uma afronta. Sobretudo para uma escola que tem em sua galeria sambas-enredo antológicos. Não deu outra! A música tem trechos difíceis de se cantar num cortejo dançante. A ideia do enredo se mostrou confusa. A falta de recursos contribuiu, claro, mas o Reizinho de Madureira não merecia virar laboratório de experiências num ano em que competiria em desvantagem.

De qualquer forma, precisamos reconhecer: as escolas de samba estão vivas. Muito vivas. E conseguiram provar isso para o Brasil todo. Goste ou não da mensagem, a maioria dos brasileiros conectados à opinião pública soube o que aconteceu na Sapucaí neste início de março.

Detalhe da máscara e maquiagem de um destaque de carro alegórico da Viradouro – Foto: Gabriel Nascimento / Riotur

08 de mar de 2019

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