Quando o samba-enredo cai no gosto do povo, o desfile entra pra história

O samba-enredo nasceu como gênero musical no final dos anos 1930, foi se moldando nas décadas seguintes. O auge de sua popularidade foi dos anos 1970 a 1990. Neste época, os LPs (vinil) vendiam milhões de cópias de dezembro a fevereiro, as rádios tocavam maciçamente e quando as TVs passaram a transmitir, ajudavam na divulgação. Isso fazia com que a maioria do público fã de carnaval chegasse na avenida com seus sambas preferidos na ponta da língua.

Essa característica ajudou a criar a mística das escolas de samba: a comunicação com o público, desfilantes e arquibancadas cantando em uníssono e vibrando uns com os outros. Mais do que luxo e famosos, a busca dessa sintonia é o maior prêmio de uma escola de samba. Foram vários episódios ao longo dos 86 anos de história dos desfiles. Vamos relembrar apenas alguns históricos:

Salgueiro 1971 – Festa para um Rei Negro

A vermelho e branco da Tijuca vinha sendo a grande sensação do carnaval pela escolha de temas africanos. Em 1971, trazia um enredo sobre a visita de uma corte africana a Pernambuco. O refrão da música “Pega no ganzê, pega no ganzá” virou mania nacional e cantado a plenos pulmões na avenida. A escola foi campeã.

União da Ilha 1977 – Domingo

O desfile mais surpreendente da Ilha, que é responsável pela sua identidade como escola “leve” e “alegre”. O samba-enredo foi, de longe, o mais cantado daquele ano, sobre o que o carioca faz no seu dia de descanso, com fantasias singelas e refrões fáceis de cantar. A escola acabou em 3º lugar, atrás de Beija-Flor e da Portela para tristeza dos amantes do carnaval.

União da Ilha 1978 – O Amanhã

Repetindo a fórmula do ano anterior, a Ilha emplacou outro grande sucesso antes e durante o desfile, o primeiro a ser realizado na então Rua Marquês de Sapucaí, que foi promovida a “avenida” por causa dos desfiles. Este samba, regravado várias vezes por artistas da MPB, tornou-se um dos grandes hits do gênero. A escola fez a festa das arquibancadas mas perdeu de novo para a suntuosidade da Beija-Flor. Acabou em 4º.

Portela 1979 – Incrível, Fantástico, Extraordinário

Incomodada com o domínio da Beija-Flor, a Portela trouxe para o carnaval daquele ano um samba muito popular, contratou o braço-direito de João 30 na Beija-Flor – Viriato Ferreira –  e fez um desfile sobre o próprio carnaval que entrou pra história. Acabou em terceiro lugar, para espanto dos amantes dos desfiles. O samba ultrapassou o carnaval e virou hino das torcidas que iam assistir aos jogos de seus clubes no Maracanã.

União da Ilha 1982 – É hoje

Também falando sobre o carnaval, a União da Ilha emplacou outro mega-sucesso no desfile de 1982.  Foi regravado inúmeras vezes por cantores da MPB, entre eles Caetano Veloso. Durante o desfile a plateia foi à loucura.

Mangueira 1986 – Caymmi mostra ao mundo o que que a Bahia e a Mangueira tem

Neste ano, a Mangueira estava em crise, sem dinheiro, mas tinha como enredo um personagem da MPB e um samba que explodiu na avenida. Mesmo com visual paupérrimo, a verde e rosa foi campeã em cima da suntousa Beija-Flor que fizera outro desfile histórico, debaixo de um dilúvio.

Vila Isabel 1988 – Kizomba, Festa da Raça

A Vila não tinha plumas, nem era a única a homenagear o centenário da Abolição, mas seu samba e a força dos desfilantes fizeram a diferença, numa apresentação que rendeu à escola de Martinho seu primeiro campeonato. Neste ano, as chuvas no Rio foram tão fortes que provocaram o cancelamento do Desfile das Campeãs. Foi um espetáculo único! Quem viu, viu.

Imperatriz 1989 – Liberdade, liberdade, abre as asas sobre nós

A Imperatriz acertou na veia com seu enredo sobre os 100 anos da República. Fez um samba melodioso e um refrão explosivo como os sambas modernos exigem e contagiou o público, tirando o título do desfile antológico da Beija-Flor sobre os mendigos. Este foi o único samba-enredo a virar apresentação de novela, na TV Globo (Lado a Lado).

Mocidade 1991 – É no Chuê, Chuê…

O desfile do ano anterior, de 1990, da Mocidade inaugurou uma era de domínio da escola, tanto estético como de força de desfile. Em 1991, ela brigava pelo bicampeoanto com um enredo sobre a água. E fez um sucesso estrondoso na avenida. Este vídeo aí mostra só o final da apresentação, quando a avenida veio “abaixo” com a passagem da bateria fantasiada de mergulhadores.

Estácio 1992 – Paulicéia Desvairada

A Estácio vinha fazendo desfiles competitivos há alguns anos. Mas em 1992 provocou com seu samba um verdadeiro maremoto no público e impediu o tricampeonato da Mocidade com outro samba popularíssimo e muito bem feito sobre os 70 anos da Semana de Arte Moderna.

Salgueiro 1993 – Peguei Um Ita No Norte

O mesmo efeito obtido pela campeã Estácio, foi conseguido pelo Salgueiro com uma viagem pelo Brasil. O samba não era uma Aquarela Brasileira, clássico do Império Serrano, mas tinha um refrão que enlouqueceu a Sapucaí tirando a vermelho e branca da Tijuca de um jejum de dez anos. Esse samba até hoje é cantado pelas torcidas.

Viradouro 1997 – Big Bang, a explosão do universo

Último título da carreira de Joãosinho Trinta no carnaval e primeiro da Viradouro no Grupo Especial. Um tema tão inusitado para as escolas de samba fez sucesso sobretudo pelo samba e pela batida funk da bateria no refrão.

No século 21, a divulgação do gênero é mais restrita nos meios de comunicação tradicionais. Graças à internet, ficou mais fácil ter acesso inclusive às competições antes de o samba oficial ser escolhido, mas as TVs exibem só refrões, os programas de auditório pouco chamam as escolas de samba e as rádios tocam funk ou sertanejo.

Isso quer dizer que o samba-enredo está em decadência? Longe disso. Do ponto de vista criativo, o gênero continua se renovando, só que menos músicas conseguem ultrapassar a barreira da grande mídia e o público que não frequenta os ensaios não sabe cantar os sambas até chegar na avenida.

Em 2018 mesmo tivemos dois exemplos da força do samba-enredo. Paraíso do Tutiuti e Beija-Flor tinha sambas fortes e foram vice e campeã respectivamente. No Desfile oficial, as pessoas choravam na frisa com a letra sobre as crianças pobres que o país tanto maltrata.

28 de set de 2018

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