O significado de Dona Ivone Lara, da alta nobreza do samba

No último Sábado de Aleluia assisti no Sesc Pompéia, em São Paulo, ao show da cantora Fabiana Cozza, cantando o vastíssimo e poético repertório de Dona Ivone Lara. A plateia, bastante heterogênea em idade, sabia cantar várias canções. Não era aquele mexer de lábios sussurrado. Era cantar mesmo, sabendo a letra, a melodia e colocando emoção. Lá pras tantas, uma senhora negra não se segurou e foi sambar em uma escada próxima do palco.

No final da apresentação, os longos e calorosos aplausos para a cantora e o violonista que a acompanhou no palco eram a perfeita tradução do quanto a música de Dona Ivone Lara comunica, toca a alma das pessoas, com sua poesia permeada por melodias irresistíveis.

Foram 96 anos de vida dos quais, segundo a própria Dona Ivone contou em entrevista, passou 84 compartilhando seu talento de compositora conosco. Pois é, sua primeira canção surgiu aos 12 anos de idade e poucos anos depois compôs um refrão que misturava infância e bom humor. “Tiê, Tiê, olha lá, oxá…” Memória dos tempos de criança pobre, em que passarinhos faziam as vezes de boneca, misturada ao dialeto da avó escrava quando queria chamar atenção dos netos: virou primeiro uma espécie de refrão que ela e os primos cantavam espontaneamente nos blocos de carnaval. Depois virou sucesso.

Tie-tiê:

Aos 22 anos, foi levada pelo primo “Mestre Fuleiro” para a escola de samba Prazer da Serrinha e acabou casando com o filho do presidente Oscar, que não gostava tanto de samba quanto o pai, Alfredo Costa.

No carnaval de 1946, “seu” Alfredo, como era chamado, decidiu na cabeceira da pista cantar outra música que não a composta para o enredo daquele ano. A revolta dos compositores e de outros integrantes da escola acabariam levando à fundação do Império Serrano em 1947. Só depois que o Prazer da Serrinha acabou, em 1951, Dona Ivone Lara sentiu-se à vontade para mudar de casa.

Foi, aliás, o marido de Dona Ivone, junto com Mano Décio da Viola, que convenceu um evangélico muito tímido a frequentar o Prazer da Serrinha e depois o Império Serrano. Seu nome: Silas de Oliveira – considerado por muitos como o maior compositor do gênero samba-enredo de todos os tempos.

Logo no seu primeiro desfile pela verde e branco saiu na ala de compositores, território completamente masculino naquela época – até hoje são poucas. Em 1965 assinou com Silas de Oliveira e Bacalhau uma das obras primas do samba-enredo: Os Cinco Bailes da História do Rio. O enredo é auto-explicativo, percorre cinco grandes festas dadas ocorridas na cidade, da fundação até a proclamação da República. Uma melodia inspirada.

Ouça o samba: 

Ela ainda participou do concurso de 1968, mas logo depois desistiu de compor samba-enredo e dedicou-se à grande paixão na sua escola: a ala das baianas. Não por outra razão foi personagem central de um grande desfile da escola: Mãe, Baiana, Mãe (1983). Nele, Dona Ivone saiu no abre-alas representando a Igreja do Bomfim como uma baiana dourada deslumbrante.

Veja o desfile de 1983:

Apesar da longa experiência de compositora, só se tornou intérprete de suas canções em 1974. Suas canções falavam de amores desfeitos “Diz que é carente de amor, então você tem que mudar, se precisar pode me procurar…”, de maneira altiva, de uma mulher que sabia o que queria. Foi enfermeira durante seis anos, fez curso de Assistência Social, seu trabalho “civil” a maior parte da vida. Trabalhou com Nise da Silveira e colaborou no processo que mudaria o curso do tratamento de doenças mentais no Brasil – um trabalho de repercussão internacional. E sabia ser política também: “Um sorriso negro, um abraço negro, traz felicidade, negro sem emprego, fica sem sossego, negro é a raiz da liberdade”.

O Império Serrano, apesar de toda a história de brigas políticas que envolveu a escola, sabe valorizar seus baluartes. Dona Ivone Lara, já debilitada pela idade, aos 90 anos, foi enredo no Carnaval de 2012 em um desfile assinado por Mauro Quintaes com samba assinado por Arlindo Cruz que rendeu o vice-campeonato à verde e branco no Grupo de Acesso A.

O desfile de 2012:

As canções dela foram interpretadas por grandes nomes da música brasileira, de Clara Nunes a Bethânia, de Zeca Pagodinho a Caetano Veloso, de Alcione a Sandra de Sá. De Beth Carvalho a Jorge Vercilo. Mas também foi charmosa e carismática no palco, mostrando que apesar da forma física de “baiana de escola de samba” sabia sambar o miudinho.

A primeira canção composta por ela para o Império Serrano virou uma espécie de hino da Serrinha:

“Não me perguntes

Pra que samba eu vou

Porque direi

Eu vou pro Império, sim senhor

Sou Imperiana na alegria e na dor”

E mesmo na dor, os imperianos se despediram da grande dama do samba com música. A autora de clássicos como Sonho Meu  e Enredo do Meu Samba, permanecerá viva para sempre na memória de quem respeita a boa música.

 

20 de abr de 2018

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