O Ita do Salgueiro triunfou após um maremoto de alegria na Sapucaí

O ano era 1993. A capa da Veja no domingo de carnaval criava uma polêmica ridícula entre as festas na Bahia e no Rio, alegando uma suposta vitória baiana sobre a folia carioca em termos de importância e prestígio devido ao sucesso nacional de artistas como Daniela Mercury e o Olodum. Na segunda-feira de Carnaval, a terceira escola a desfilar foi o Acadêmicos do Salgueiro.

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Vídeo completo do desfile histórico do Salgueiro

A vermelho e branco tentava mais uma vez quebrar o incômodo jejum, que já durava 18 anos àquela altura – o último campeonato havia sido em 1975. O enredo concebido por Mário Borriello era uma espécie de Aquarela Brasileira revisitada, partindo do Pará, à bordo de um Ita (os barcos que atravessam os rios naquela região), uma ode aos migrantes.

Só que, em vez do contemplativo e cheio de adjetivos pomposos da composição célebre do genial Silas de Oliveira (autor do hino do Império Serrano de 1964), o samba de Demá Chagas, Arizão, Bala, Guaracy e Celso Trindade chegava à avenida com sucesso garantido. Todo sabia cantar a música e sobretudo o refrão, um dos mais incônicos do carnaval carioca em todos os tempos:

Explode coração, na maior felicidade

É lindo o meu Salgueiro

Contagiando e sacudindo essa cidade

 Que o samba-enredo era conhecido, ninguém tinha dúvida, mas ninguém estava preparado para o que aconteceu na avenida naquele dia 22 de fevereiro. Foi uma legítima explosão de felicidade na Sapucaí que contagiou um setor e outro e depois outro e logo estavam 60 mil pessoas pulando e gritando feito doidas o samba salgueirense, até o setor 9 turístico entrou na onda.

O abre-alas homenageava com um frota de barcos a festa religiosa do Círio de Nazaré em Belém, de onde parte a viagem proposta pelo enredo inspirado na canção homônima de Dorival Caymmi, que narrava a viagem costeira a bordo do vapor “Itapé”, quando o compositor baiano migrou em 1938 para a o Rio de Janeiro. Eles vinham escoltados por uma comissão de frente formada por oficiais da marinha com bandeiras vermelho e brancas, o que rendeu uma coreografia simples e vistosa ao mesmo tempo. A ala logo depois ainda estava no clima do Círio, usando as cordas típicas daquela festa.

 

O Abre-alas do Salgueiro em 1993 / Foto: Widger Frota

A primeira parte do desfile era a partida da viagem e trazia um enorme barco como os que navegam nas águas amazônicas, seguido de sereias, cavalos marinhos e ondas retratados no segundo refrão: “No balanço das ondas, eu vou, no mar eu mostro a saudade, amor, o vento traz esperança e ansiedade, vou navegando em busca da felicidade”

Daí em diante, a sucessão de alas e carros era uma grande viagem pela costa brasileira com referências muito fáceis de se identificar. Como a do primeiro porto de parada, que era São Luís, com seus azulejos e uma enorme escultura alusiva ao bumba-meu-boi. Ou a do porto de Fortaleza e suas jangadas. As alas eram um desdobramento dos carros e as fantasias tinha leitura igualmente fácil, como as das rendeiras e dos pescadores de lagostas na parte dedicada ao Ceará.

Esteticamente, não havia nada muito impressionante nem tão luxuoso, mas tudo adequadíssimo ao enredo. O trunfo do Salgueiro foi harmonia e evolução, sobretudo no início da apresentação. O público que estava apaixonado pelo samba respondeu com força e o cenário estava pronto: a cada passagem de um dos dois refrões o Sambódromo ia a loucura. A escola certamente se empolgou com a respostas das arquibancadas e o desfile cresceu ainda mais.

A bateria veio toda em branco, com os percussionistas fantasiados de marinheiros e o mestre Louro, o diretor, de comandante. A apresentação da Furiosa foi irrepreensível, colocando sempre o samba pra frente, mantendo em alta o nível de empolgação da plateia que era empurrada ainda mais pela atuação de Quinho, o intérprete oficial.

O passeio continuou pelo Rio Grande do Norte, com seus cataventos e uma sereia emergindo de uma salina, e depois por Pernambuco, representado pelo Maracatú elefante. Em Alagoas, os destaques foram os bonecos de barro; já em Sergipe, alas de cangaceiros, lembrando que foi lá que morreu Lampião, uma enorme escultura, ao lado de outra de Maria Bonita, na alegoria do setor.

Depois dos cangaceiros, várias alas destinadas à Bahia como tocadores de berimbau, artigos do Mercado Modelo, até chegar à alegoria em que havia uma baiana do acarajé enorme.

Carro da Bahia no desfile do Salgueiro de 1993

Mas foi neste momento que, além de toda empolgação se juntou um contingente de emoção extra: a escola desfilava com 5.500 componentes e o tempo começou a ficar curto. A escola apertou o passo e algumas alas não conseguiram evoluir do mesmo jeito que o início da escola. A preocupação passou a ser não estourar o tempo, porque cada minuto usado a mais significaria um ponto a menos, segundo o regulamento.

A última parte do desfile era o imigrante desembarcando no Rio. O carro que encerrava o desfile se chamava “Explode Coração” e trazia uma reprodução das arquibancadas da Sapucaí.

Apesar da correria, o Salgueiro terminou em 77 minutos dos 80 possíveis o desfile. A plateia torceu para o cronômetro não punir a escola e cantava o samba de ponta a ponta, empolgada. No final, a vermelho e branco foi brindada com um sonoro “É Campeã”.

No dia da apuração, a única dúvida séria era sobre a porta-bandeira Tânia, que tivera um pequeno acidente em frente a uma das cabines. Mas naquela época, os jurados eram sorteados na hora da apuração e as notas que valeram para o quesito mestre-sala e porta-bandeira não incluíram as da jurada que viu o tropeço. De resto, o Salgueiro passeou e confirmou seu favoritismo com 2,5 pontos de vantagem sobre a Imperatriz, a vice-campeã.

Será muito difícil que outra escola de samba repita no futuro o que aconteceu com o Salgueiro naquele desfile, em termos de empolgação e comunhão com as arquibancadas. Quem estava presente, certamente viu um momento histórico do carnaval.

Fotos exibidas aqui de Sebastião Pinheiro e Widger Frota seguem a licença Creative Commons 4.0. <https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0/deed.en>

02 de jan de 2019

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