Memórias da Sapucaí: A maior história de amor já cantada no Carnaval

Inicio hoje um novo tipo de conteúdo por aqui: em vez de relembrar um conjunto de desfiles, apenas um que tenha entrado para a história do carnaval carioca. O primeiro que vamos resgatar é a quente apresentação da Viradouro em 1998, com o enredo Orfeu Negro do Carnaval.

A Viradouro era a quarta escola a desfilar de segunda-feira e entrava na avenida como atual campeã, título obtido em 1997 com um enredo inusitado para as escolas de samba até então, a história da criação do universo. Para 1998, dividia os holofotes com apenas outra escola, a Mangueira, que faria homenagem a Chico Buarque. Mas a vermelho e branco de Niterói tinha um trunfo: seu samba virou mania no Rio desde que foi lançado. Era tocado e retocado nas rádios (sim, naquela época rádio também tocava samba-enredo).

O enredo de Joãosinho Trinta, em minha opinião, é um dos mais geniais que ele criou. Orfeu Negro do Carnaval contava três histórias em uma. O mito grego de Orfeu era “sincretizado” para o Brasil na carona da peça de Vinícius de Moraes. Ele era um compositor morando numa favela carioca e apaixonado por Eurídice, uma mulata de escola de samba, musa inspiradora. Enquanto contava a história de amor entre Orfeu e Eurídice, ele também narrava a história do carnaval que era o enredo da escola de samba para a qual Orfeu compunha. Coisa de cinema, né?! Então: para completar o hype, o diretor de cinema Cacá Diegues usaria o desfile da escola para captar cenas para um longa-metragem que estava fazendo com o mesmo mote do enredo da Viradouro.

Desde os primeiros instantes, a avenida tremeu com a Viradouro, com o samba famoso interpretado com maestria pelo grande Dominguinho do Estácio. A bateria de Mestre Jorjão deixava a arquibancada doida de ansiedade para saber se repetiria a batida funk que tanto sucesso fez no ano anterior.

O abre-alas da escola era uma favela ensolarada, como jeitão de Monte Olimpo, o morro onde Orfeu vivia, todo em vermelho e dourado. O personagem no abre-alas era representado pelo cantor Djavan. Uma comissão de frente de Apolos com um enrome costão dourado ajudou a formar o impacto inicial.

A segunda alegoria era dedicada ao talento de Orfeu, sobre sua vida no morro, suas composições e o talento dele para com as mulheres, embora só tivesse olhos para Eurídice. Os carros tinham dupla função: contar a história de amor entre os dois e a história do carnaval, enredo da escola fictícia de Orfeu. A primeira entidade carnavalesca homenageada eram os ranchos e o desfile que começara vermelho e laranja, passava a assumir tons mais pasteis.

No mito grego, Eurídice é picada por uma víbora e morre. Na versão carioca, ela é morta por uma bala perdida “o zumbido da fatalidade” como diz a letra do samba. O cenário eram os bailes de Veneza, o que torna a paleta do desfile mais escura e sombria.

Arrasado pela morte da amada, Orfeu mergulha no inferno de Hades para tentar resgatá-la, período que tem como cenário um desfile de Grandes Sociedades, grupos carnavalescos dos quais as escolas de samba herdaram os carros alegóricos. Uma das mais famosas se chamava Tenentes do Diabo.

Cada vez mais depressivo, o herói se entrega aos blocos de sujo (mais parecidos com os “bloquinhos” de hoje) onde encontra as Bacantes, ferozes mulheres que se irritam pelo fato de ele só querer saber de Eurídice e jogam Orfeu no abismo da saudade, ou seja, o jogam do alto do morro no Rio.

Enquanto Orfeu sucumbia ao amor, sua escola desfilava na avenida com um samba seu, ambientado em um desfile de Corsos, muito comum entre a elite no início do século 20. No final, o dourado e vermelho voltam ao desfile, porque a escola foi campeã com o samba de Orfeu, o deus da música. No carro final, uma enorme escultura do Orfeu Negro.

“O Grêmio do Morro venceu e o samba do negro Orfeu tem um retorno triunfal” diziam os versos do samba antes de explodir no refrão mais cantado da avenida naquele carnaval:

“O amor está no ar, vai conquistar seu coração, tristeza não tem fim, felicidade sim, sou Viradouro, sou paixão”

No melhor estilo João Trinta, as fantasias eram criativas, coloridas e, desta vez, leves, facilitando a evolução da escola, empolgadíssima com o próprio samba. As arquibancadas responderam muito bem e foram se empolgando cada vez mais com o desfile. A única nota tensa foi com o primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira, Patrícia e Andrezinho. Ela desfilou grávida e na frente de uma cabine de jurados deixou a peruca cair o que viria a custar pontos precisosos.

A bateria de Jorjão fez a batida funk e outra inspirada no baião demonstrando sua versatilidade e levando o públio ao delírio (veja a reação do público no minuto 40 do vídeo acima). Ao final da Sapucaí, o público gritava sem dó “é bicampeã”. Parecia favas contadas, mesmo com o fortíssimo desfile que a Mangueira fizera para Chico Buarque.

Na apuração, a surpresa: a Viradouro foi canetada não só em mestre-sala e porta-bandeira, como esperado, mas também em bateria e, pasme-se, samba! Com essas notas acabou em quinto lugar enquanto viu a Mangueira e a Beija-Flor dividirem o campeonato, com direito mudança de regulamento. Os dirigentes saíram da avenida revoltados e, no desfile das campeãs, a escola trouxe uma enorme faixa abrindo a apresentação com os dizeres “Por que?”

Joãosinho Trinta nas Campeãs de 1998

Num tempo em que se contemporiza tanto a violência e o medo, o ódio e a tristeza se misturam vale a pena se inspirar neste grande momento do carnaval. Veja a letra completa deste sambaço:

Hoje o amor está no ar

Vai conquistar seu coração

Tristeza não tem fim

Felicidade sim

Sou Viradouro, sou paixão

 

Lá, onde a vida faz a prece

E o o sol brilhante desce para ouvir

Acordes geniais de um violão

É o reino de orfeu

Rei das cabrochas

Seduzidas pela sua inspiração

Eurídice, o verdadeiro amor

Do vencedor por aclamação geral

Da escola de samba do morro

Que vai decantar nos seus versos

A história do carnaval

 

É na magia do sonho que eu vou

Mitologia no samba, amor

 

Aí, o zumbido da fatalidade

Que atinge a cidade

Traz mais uma desilusão

Orfeu caiu

No abismo da saudade

E voa para eternidade

Levado pela ira da paixão

 

Tem no seu talento reconhecimento

Num desfile magistral

O grêmio do morro venceu

E o samba do negro orfeu

Tem um retorno triunfal

 

(Foto da Capa: Hipólito Pereira)

11 de out de 2018

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