Grande Rio tenta recuperar imagem criticando os pecados alheios

Foto: Fernando Grilli | Riotur

A Grande Rio trouxe de novo a metalinguagem para o desfile de escola de samba. Foi pivô da virada de mesa que cancelou o rebaixamento dias depois da apuração do Carnaval 2018. Para o próximo ano, ela resolveu assumir seu papel de vidraça da vez, mas adverte: vai atirar pedras de volta com seu enredo Quem nunca? Que atire a primeira pedra.

Sim, o texto vem com um sorriso algo amarelo, ao afirmar que tudo deve ser encarado de forma bem humorada, mas o recado é pra lá de claro desde o início da sinopse, divulgada poucos dias depois do anúncio do enredo:

Fala sério aqui com a gente, “de boas”, “numa boa”, francamente: quem nunca saiu dos trilhos, perdeu o prumo, deu detalhe, rodou a baiana, chutou o balde e o pau da barraca, armou um barraco ou mesmo deu uma virada de mesa? Um deslize, uma gafezinha qualquer ou uma falta de educação das grossas mesmo? Quem nunca? Eu, você, todo mundo, pelo menos uma vez, já esqueceu etiquetas, manuais e regulamentos e atravessou o samba na passarela dessa vida.

A concepção é, mais uma vez, do casal carnavalesco Renato e Márcia Lage. A proposta é chamar à reflexão os críticos da Grande Rio. Segundo eles, o enredo trata de educação e a escolha foi abordar o tema pelo viés da falta de educação. Tão humano quanto o ato bíblico de atirar a primeira pedra são os nossos maus hábitos que expressam impaciência, egoísmo, descuido, intolerância, “jeitinho”… ou até falta de informação.

Foram enquadrados nesta categoria de “pequenos maus hábitos” coisas como furar fila, fingir estar dormindo pra não ceder o banco do ônibus pra idoso ou gestante, colar chiclete embaixo da mesa, lançar a guimba do cigarro na calçada ou aderir àquele pacote do “gatonet”, que seriam “fichinha” perto de outras atitudes questionáveis. Vale ressaltar que “gatonet” é crime que pode levar a pessoa à prisão, enquanto os demais são só falta de educação mesmo.

O rosário desfiado de contravenções, crimes, grosserias e maus hábitos também inclui as brigas nas redes sociais e ainda dá uma espetada nos analistas e críticos do carnaval, como este que vos fala. No país do carnaval, de mais de duzentos milhões de carnavalescos, quem nunca saiu detonando um enredo nas redes de “amigos” sem mesmo ler a sua sinopse ou aguardar o seu desenvolvimento na Avenida? Em meu favor, digo que este texto se dedica a analisar o enredo a partir do texto da sinopse e não pelo título. 😛

Lembram-se das faltas que causam prejuízos ambiental, como esgoto e sacos de lixo jogados em cursos d’água, e os maus hábitos dos usos e costumes associados ao futebol, com seus hooligans brigões, ou à folia carnavalesca, como o bloco dos mijões que “desfila” durante o Reinado de Momo ou a propensão para “pegar geral”, o famoso ninguém é de ninguém.

Depois do diagnóstico, um alívio que o enredo traz: existem, sim, os códigos para regular nossa “selvageria” de maus hábitos:

Nossa conduta não é de todo ruim. Afinal, somos seres inteligentes, sempre capazes de aprender. A última parte do nosso enredo é uma ode às maravilhas que o Conhecimento é capaz de edificar, aos monumentos que são o respeito ao outro e aos códigos coletivos, à convivência harmoniosa de contrários, à ética, à preservação ambiental, à construção de novas realidades por meio do estudo, da leitura, da pesquisa e da inovação.

Em outras palavras, a solução para tudo isso é a educação e a escola avisa que o encerramento do desfile será uma espécie de faxina moral para enxaguar os maus hábitos, usando a apresentação da Grande Rio para a função mais importante desempenhada pelas escolas de samba: a possibilidade do aprendizado a partir da alegria. O saber eleva a alma e refina a mente, projetando um futuro melhor para os bem educados.

Reveja o desfile da Grande Rio em 2018:

É preciso lembrar o contexto para entender este enredo. A Grande Rio foi do céu ao inferno desde a preparação até a apuração do Carnaval 2018. Quando contratou Renato Lage, em 2017, tirando-o do poderoso Salgueiro, a tricolor de Caxias pretendia recuperar um pouco do prestígio artístico de que gozou nos primeiros anos de sua trajetória, sobretudo entre 1998 e 2007, quando por lá passaram grandes nomes do carnaval como Max Lopes e Joãosinho Trinta.

O enredo escolhido era de apelo popular, uma homenagem a Chacrinha, e a escola queria que este fosse um desfile para marcar a volta da Grande Rio como postulante séria ao título, feito inédito para ela até aqui.

Só que no desfile, uma falha na concentração e quebra de eixo de carro alegórico abriu um buraco gigantesco, fraturando toda a evolução e harmonia da escola, que ainda estourou o tempo. O desfile apoiado por um samba fraco transcorreu em clima de tristeza.

Abertos os envelopes, o que se imaginava aconteceu. A tricolor de Caxias acabou em penúltimo lugar e, como a Liesa estava tentando ainda se livrar dos espólios da virada de mesa de 2017, duas desceriam. Terminada a apuração, para todos os efeitos estavam rebaixados Império Serrano, último colocado, e Grande Rio.

A escola perdeu mestre-sala, porta-bandeira, intérprete. No dia 1º de março, houve uma plenária na Liesa. O conselho superior, composto pelos três manda-chuvas estava dividido sobre rebaixar ou não as duas escolas. O presidente da Unidos da Tijuca, Fernando Horta, apresentou um abaixo-assinado de políticos entre os quais o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, e os prefeitos do Rio e de Caxias pedindo “clemência”. Apenas Portela e Mangueira bateram pé e exigiram que o regulamento fosse cumprido: foram derrotadas por 10 a 2. O presidente da Grande Rio, real articuladora de tudo, cunhou a seguinte frase: “quem tem amigos, não morre pagão”.

O não-rebaixamento da Grande Rio representou nova desmoralização ao regulamento do Grupo Especial e com uma agravante. Em 2017, a anulação do rebaixamento foi decidida antes da abertura dos envelopes, sem o resultado conhecido, embora se temesse que a grande prejudicada seria a Unidos da Tijuca. Em 2018, todos já sabiam do resultado. As pedras voaram rumo à vidraça da tricolor, que queria ser campeã e só não foi rebaixada por demagogia política.

O enredo vai dar suas espetadas e não fica claro no texto da sinopse como serão abordados os pecados anteriores das escolas de samba. Mas me incomoda a confusão que o texto faz entre maus hábitos e contravenções e crimes, colocando no mesmo balaio coisas com pesos diferentes, como a quebra de contrato que o desrespeito ao regulamento do desfile representa.

Parece-me um pouco uma tentativa da escola de surfar a onda da Beija-Flor 2018, de criticar “tudo isso que está aí”, igualando corrupção com furar fila, por exemplo. A comparação não está no texto, mas é típica deste tipo de discurso do “atire a primeira pedra”.

Por outro lado, Renato Lage é um profissional experiente que sabe mexer com temas leves e bem humorados, como provou no delicioso desfile do Salgueiro sobre o Rio no cinema, de 2011, ou a malandragem de 2016. A Grande Rio optou também por não

Um desfile muito bom da Grande Rio, em 2008:

17 de ago de 2018

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