O que se esconde por trás da escolha de um samba-enredo para desfile

Na madrugada desta sexta a Beija-Flor escolheu seu hino para o Carnaval 2018, selando a safra do ano. Chega ao fim uma maratona que se iniciou em junho: sinopse, parcerias fechadas, reuniões de tira-dúvidas com o carnavalesco, composição, gravação em estúdio e vídeo, arregimentação de torcidas, divulgação e campanhas em redes sociais. Tudo isso faz parte da vida de um compositor de samba-enredo, especialmente daqueles que pretendem ter sua criação entoada diantes de milhões de pessoas no desfile do Grupo Especial.

Anúncio da vitória do samba da Beija-Flor:

Durante o processo, especialistas e torcedores fazem toda espécie de especulação a respeito de quem vai ganhar, por que um concorrente A ou B foi eliminado. O concurso significa, em média, uma dúzia de sambas por escola. As campeãs Portela e Mocidade tiveram 23 composições em competição enquanto a Mangueira pelo menos 18.  As conjecturas vão desde suposta armação para beneficiar algum compositor até intrincadas conspirações da política interna daquela escola.

Há todo um folclore em torno da disputa, mas, na verdade, as variáveis que devem ser levadas em conta são muitas e isso provoca, às vezes, a eliminação precoce de músicas muito boas que são condenadas a uma espécie de limbo carnavalesco, de onde não escapam mesmo compositores de renome. Arlindo Cruz, por exemplo, se aliou a Nelson Sargento na disputa da Mangueira para 2017, mas não levou. Não é todo ano que Martinho da Vila ganha na sua escola.

Anúncio do samba campeão na Tijuca, que tem Mart’Nalia como uma das autoras:

Então o que é preciso considerar? O samba-enredo requer qualidades intrínsecas, por exemplo, ter uma letra que descreva o enredo de forma poética ou precisa e/ou uma melodia interessante. Só ser bonito, por incrível que pareça, basta. Afinal ele terá de ser cantado por 60 minutos em média e não pode ficar enfadonho. Ele tem de contagiar os componentes da escola, aqueles que fazem o dia a dia da agremiação, participam espontaneamente do processo de escolha. Se o samba for lento, a escola pode ter de apressar demais o andamento (o que tira a beleza) ou perde pontos de evolução e cronometragem, afinal são só 75 minutos pra 3.500 pessoas cruzarem os 700m de avenida.

Há ainda dois casamentos a serem considerados seriamente: um deles é com a bateria. Ao marinheiro de primeira viagem, pode parecer que elas tocam mais ou menos igual, mas não é verdade. Cada orquestra percussiva tem seu estilo ou, pelo menos, o estilo do mestre que a comanda; um samba muito acelerado, marcheado dificilmente combinaria com a Portela, ao mesmo tempo que um samba melodioso e mais cadenciado soa estranho na Estácio de Sá cuja bateria gosta de tocar “pra frente” como se diz na gíria, ou seja, mais acelerada. Outra pessoa que precisa casar bem com o samba é o intérprete. Muitas vezes, é preciso acertar o tom depois de escolher para que ele se ajuste ao timbre do cantor que comanda o carro de som. Não poder ser baixo demais, se não o componente desanima, não pode ser alto demais ou a maioria deles vai terminar o desfile sem voz e isso pode comprometer a harmonia.

Nas eliminatórias, fixa-se um tempo para as parcerias executarem o samba, que será acompanhado pela bateria durante parte da apresentação. O nível da disputa cresceu tanto que os compositores raramente defendem eles próprios o samba. Contratam intérpretes profissionais das outras escolas, já que o cantor oficial da agremiação não canta sambas concorrentes, só o hino, como se chama o samba-enredo depois de escolhido. No final, representantes dos segmentos da escola (o carnavalesco, a bateria, a harmonia, ala de compositores, velha guarda, baianas) se reúnem e vão cortando os que não se encaixam até a escolha final. A composição deste júri varia e em alguns lugares, dizem, o presidente decide.

As escolas podem errar por conta de intrigas políticas, vontade do carnavalesco ou mesmo do presidente? Claro! Várias vezes. Muitas obras lindas deixaram de ir para a avenida por barbeiragem. O Salgueiro foi vítima do próprio sucesso por anos tentando achar “um novo Ita”, samba do campeonato de 1993 que ficou conhecido no Brasil inteiro (“explode coração, na maior felicidade…) .

Este ano, houve polêmica por lá na semi-final quando um dos favoritos foi eliminado, mas o samba escolhido agradou a escola. Na Mocidade, o favorito despontou cedo e dificilmente perderia a disputa.

Na Mangueira e Portela, os concursos foram bastante movimentados: na Águia, alguns belos sambas caíram antes da final. Na verde e rosa, depois da escolha, aventou-se mudar a letra colocando o verso “A Mangueira é Universal”, assim com U maiúsculo. A polêmica se instalou na Internet entre quem defendia a mudança como uma forma a mais de espetar o prefeito Crivella e aqueles que consideravam uma propaganda subliminar, espécie de morde-e-assopra. Venceu o bom senso: a mudança não foi feita.

Bateria da São Clemente grava sua participação no CD:

E depois o coro:

As escolas já começaram a gravar os sambas que vão a partir de agora “amadurecer” para desabrochar de vez na avenida (ou murchar, também acontece, como o belo samba-sertanejo da Imperatriz de 2016).

*Gostaria de deixar aqui minhas homenagens aos falecidos ensaios técnicos. Em função das pendengas com a Prefeitura, a Liga optou por prejudicar o povão. Lamentável.

20 de out de 2017

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