Escolas de samba têm muitos namoros e raros casórios com astros da MPB

Foto: Rodrigo Propósito / WikiMedia

Por que as escolas de samba nunca foram “invadidas” por compositores famosos da música brasileira? Por que, por exemplo, um Chico Buarque (na foto acima desfilando como homenageado pela Mangueira no Carnaval de 1998), um Dorival Caymmi nunca fizeram um samba-enredo para ser cantado na avenida? Responder a essa questão exige revisar a origem da própria escola de samba.

As agremiações cariocas vieram de organizações carnavalescas reunidas em torno de compositores do povo, ligados às respectivas comunidades. Basta lembrar que o primeiro registro de uma “competição” entre escolas foi um concurso essencialmente musical disputado entre os bambas da Mangueira, do Estácio e de Oswaldo Cruz (bairro de origem da Portela) organizado em janeiro de 1928 por um jornalista, escritor e pai de santo chamado José Gomes da Costa, que entrou pra lenda do samba como Zé Espinguela. Lembram deste primeiro concurso gente como Ismael Silva, Paulo da Portela, Heitor dos Prazeres e Cartola, nomes da história do samba.

A partir de 1932, as escolas passaram a desfilar no concurso realizado na Praça Onze. Na medida em que o evento foi crescendo, ficou claro que tudo se organizava em torno dos sambas cantados – mais de um nos primeiros anos, com versos de improviso, até a invenção do enredo e, posteriormente, à determinação pelo regulamento de que o samba seria só um e deveria ser pertinente ao tema.

Assim, o samba-enredo nasceu como obra dos compositores de cada agremiação, feitos de forma exclusiva para o concurso. A maioria era esquecida depois do carnaval. Em 1949, o Império Serrano trouxe para a avenida a obra Exaltação a Tiradentes, composição de Estanislau Silva, Penteado e Mano Décio da Viola. Letra curta, melodia simples e inspirada fez sucesso e foi regravado diversas vezes por cantores que não tinham ligação orgânica com as escolas de samba.

Exaltação a Tiradentes gravado por Elis Regina:

Nos anos 1950 e 1960, o samba-enredo foi ganhando força como música de carnaval e acabou revelando compositores que cruzariam a fronteira e se tornariam mais famosos fora das escolas. É o caso de Paulinho da Viola, autor do hino da Portela de 1966 Memórias de um Sargento de Milícias (baseado no romance homônimo) e Martinho José Ferreira, que compôs Carnaval de Ilusões para a Vila Isabel no ano seguinte. Dali em diante passaria a ser conhecido como Martinho da Vila e assinou vários sambas-enredo. É o casamento mais emblemático, porque Martinho fez muito sucesso fora da Vila.

Em 1968, pela primeira vez, os sambas-enredo do ano foram reunidos e gravados em um mesmo LP, o que iniciaria a fase mais popular do gênero. Com a fama crescente das escolas de samba, cantores de MPB passaram a fazer gravações de hinos do carnaval. Elza Soares e Clara Nunes chegaram a ser intérpretes oficiais na avenida de suas escolas, Mocidade e Portela, respectivamente.

Elza Soares canta Festa do Divino, samba da Mocidade em 1974:

Elza eternizou um sucesso em homenagem a sua escola que começava assim: “Lá vem a bateria da Mocidade Independente, não existe mais quente…”. A ode gravada por Clara à Portela até hoje é cantada na concentração: “Salve o Samba, salve a santa, salve Ela, salve o manto azul e branco da Portela…”.

No carnaval de 1974, a mesma Portela causou discórdia quando o então presidente Carlinhos Maracanã convidou Evaldo Gouveia e Jair Amorim, dois compositores de MPB com incontáveis sucessos para compor o samba da escola para o enredo O Mundo Melhor de Pixinguinha. A dupla foi cantada por gente como Ângela Maria, Cauby Peixoto, Gal Costa, Bethânia, Milton Nascimento,  Jair Rodrigues, Wilson Simonal. Foram tidos como forasteiros.

O próprio Evaldo Gouveia interpreta o samba-enredo sobre Pixinguinha:

Os anos 1970 e 1980 trouxeram o samba-enredo para o posto de principal música de carnaval. Cantores e compositores de peso como Jair Rodrigues, Caetano Veloso, Elza Soares, Clara Nunes e até mesmo Elis Regina gravaram sambas-enredo. Muitos outros já desfilaram e ainda desfilam na condição de componentes ilustres como Jorge Ben no Salgueiro. Mas as composições das escolas continuaram sob responsabilidade das respectivas alas de compositores

Além do lendário Silas de Oliveira, Beto Sem Braço, Aluísio Machado (Império Serrano), destacam-se nomes como Davi Correia, Noca (Portela), Zé Catimba (Imperatriz), Didi (Ilha do Governador), Hélio Turco e Jurandir (Mangueira), Bala, Zuzuca, Geraldo Babão (Salgueiro), e uma lista de talentos interminável.

Sem participar das escolas como compositores, nomes da MPB lançavam músicas com estrutura de samba-enredo para fazerem sucesso no pré-carnaval (época entre o final do ano e o carnaval), tocadas nas rádios e programas de auditório, mas que não seriam cantadas na avenida. Simone fez muito isso, mas os casos mais ilustres são Vai Passar, de Chico Buarque, e Canto das Três Raças e Portela na Avenida, de Paulo César Pinheiro, gravadas por Clara Nunes.

Vai Passar, de Chico Buarque:

No século 21, o jogo se inverteu. Com o samba-enredo menos presente na mídia,  mas ainda fornecendo um ganho monetário sólido para os vencedores, sambistas consagrados com alguma relação com as escolas passaram a disputar os concursos até como chamariz: Diogo Nogueira (Portela), Arlindo Cruz (Império Serrano), Xande de Pilares (Salgueiro), Dudu Nobre. Assinar um samba-enredo ainda é visto como uma vitrine e nomes de peso como esses têm até mais condição de bancar os custos das disputas de samba, cada vez mais acirradas. Quem não tem grandes recursos, acaba se aliando com muitos parceiros, o que explica sambas com seis, oito nomes na composição.

Arlindo Cruz assinou com Aluísio Machado e parceiros o samba do Império em várias ocasiões, sendo a primeira vitória o marcante samba de 1996 sobre Betinho:

Nos últimos anos, as escolas têm recorrido cada vez mais às encomendas, a eliminação completa do concurso, fenômeno frequente na Série A (Grupo de Acesso) e que chegou ao Especial com mais força em 2018. O lindo samba do Tuiuti sobre a escravidão, tinha como um de seus autores o compositor de MPB Moacir Luz. Mart’Nalia, filha de Martinho, concorreu e venceu o samba na Unidos da Tijuca, em homenagem a Miguel Falabella. Em 2019, o próprio Tuiuti e a Grande Rio vão desfilar com sambas encomendados.

Já o Império Serrano, foi ainda mais longe: pela primeira vez na história do grupo de elite do carnaval, usará no lugar do hino uma MPB jamais imaginada para ser desfilada por uma escola de samba, a música O que é o que é, de Gonzaguinha.

O único caso anterior parecido foi o da Viradouro em 2015. Naquele ano, o presidente da escola, Gusttavo Clarão, que é compositor de prestígio no meio das escolas, fez a junção de dois sambas de Luís Carlos da Vila, Um Dia de Graça e Nas Veias do Brasil. A versão híbrida levada à avenida pela vermelho e branco de Niterói nasceu de duas músicas com estrutura de samba-enredo, ainda que nunca tenham sido. O resultado agradou os críticos e gerou polêmica.

O samba da Viradouro de 2015, junção de duas composições de Luiz Carlos da Vila:

Já a composição escolhida pela Serrinha, vai integralmente para a avenida do jeito que foi composta, apenas num andamento adequado para o cortejo. É uma quebra de paradigma, curiosamente, feita por uma escola que tem uma das alas de compositores mais espetacular da história do samba-enredo.

Gravação não-oficial da música de Gonzaguinha transformada em samba-enredo:

As escolas de samba têm duas missões da maior importância pela frente: a primeira é repensar as bases em que realizam o concurso de samba para baratear a disputa e torná-la mais acessível a todos os membros de suas respectivas alas de compositores, que nos brindaram com tantas obras primas para quem curte este gênero tão brasileiro de expressão musical.

A outra é admitir que, independente da qualidade intrínseca das obras, as escolas precisam se comunicar melhor com seus torcedores e o público em geral para divulgar seus hinos como acontecia espontaneamente nos anos 1970 e 1980 e tentar emplacá-los como sucesso, viralizando-os. A ferramenta da internet certamente não é um complicador.

09 de nov de 2018

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