Como as escolas de samba passaram a exaltar a cultura afro-brasileira

O ano era 1988. Na segunda-feira de Carnaval a Vila Isabel balançaria as estruturas da Sapucaí com um desfile sem luxo, materiais alternativos, estampas tribais e uma força de canto e dança exemplares. Horas mais tarde, fechando as apresentações do Grupo Especial, a Mangueira lembraria no tom inesquecível de mestre Jamelão que cem anos haviam se passado desde a Abolição da Escravidão no Brasil, mas os negros ainda eram subjugados pela pobreza.

Trecho de Kizomba (Vila 1988)

 
Estes dois desfiles históricos dão a impressão de que o carnaval brasileiro sempre foi uma apropriação cultural dos negros. A história não é tão fácil: as origens da festa, todo mundo sabe, são europeias. Enquanto as cidades brasileiras brincavam o entrudo, os negros se reuniam na chamada Pequena África, área central do Rio, nos arredores da Pedra do Sal, mantendo vivas suas tradições, música e dança que viriam a gerar o samba. No século 19, surgiram os primeiros blocos e cordões, embriões das escolas de samba, que só apareceriam no final dos anos 1920 sob as bênçãos das velhas baianas que faziam grandes rodas em suas casas (a mais famosa delas foi Tia Ciata).

Trecho do desfile da Mangueira em 1988

 

Organizações frequentadas e criadas por negros, as escolas de samba logo despertaram a atenção do povo. O poder público levou três anos para tornar a competição parte do calendário oficial da cidade em 1935. Estávamos no governo Getúlio Vargas e as autoridades viram nas escolas um meio de propagar valores nacionais. Daí a determinação de que só abordassem temas nacionais.

Na medida em que as escolas foram se organizando, criaram o enredo, o samba-enredo, as fantasias e passaram a atrair artistas. Foi neste movimento que um grupo de alunos da Escola Nacional de Belas Artes, comandados por Fernando Pamplona foi para o Acadêmicos do Salgueiro. No carnaval de 1960, a vermelho e branco cantou a revolta do Quilombo dos Palmares. Estava aberta a porta para trocar as exaltações aos “grandes vultos da história” ou artistas da cultura “branca” por personagens que tivessem importância para a identidade negra. Foi nessa esteira que enredos como o da escrava Chica da Silva e de Chico Rei, o ex-escravo que libertou seu povo, fizeram sucesso.

Cenas de um documentário contando a história do Salgueiro e seus enredos revolucionários

 

Daí em diante, as escolas de samba passaram a cantar a história, a religião, as tradições negras ancestrais ou atuais em seus enredos, na medida em que ganhavam projeção nacional. De atração pra lá de secundária, nos anos 30, as escolas se tornaram o evento cultural mais importante do carnaval brasileiro.

Joãosinho Trinta saiu do Salgueiro e alçou a até então desconhecida Beija-Flor de Nilópolis na grande novidade do carnaval. Ele começou homenageando o jogo do bicho em 1976, depois a história do carnaval, em 1977, e em 1978 contou a história da criação do mundo, mas na tradição do povo Nagô. As três vitórias seguidas modificariam os rumos do carnaval e lhe dariam fama internacional.

Cenas do Desfile da Beija-Flor de 1978 (a partir de 2 min)

Os anos 1980 foram tomados por um tom mais politizado nos desfiles e, neste contexto, surgiram os dois desfiles que citei no início deste texto. Desde então, nunca mais os “temas afros” deixaram de frequentar os desfiles, inclusive de episódios pouco conhecidos da história como a revolta dos escravos Malês na Bahia e a saga dos agudás, descendentes de escravos brasileiros e que fizeram o caminho inverso rumo à África – ambas contadas pela Unidos da Tijuca, respectivamente em 1984 e 2003.

Desfile sobre os agudás, em 2003

 
Em 2018, 30 anos depois de Kizomba, a escola Paraíso do Tuiuti volta a fazer a pergunta da Mangueira: a escravidão foi mesmo extinta? Como classificar a má distribuição de renda e o fato de que a maioria da população pobre é negra, vítima de exclusão social e de um racismo velado?

Ao crescerem, as escolas de samba incorporaram todos os setores da sociedade e há muito deixaram de ser uma manifestação do “gueto” negro. Viraram espelho do multiculturalismo da sociedade brasileira, incorporando também entre seus enredos os temas pertinentes à tradição indígena e de outros povos que formam o grosso da população brasileira. Ainda assim, sempre que as escolas precisam voltar-se às origens, revisitam temas de suas origens africanas.

Ouça uma playlist com vários sambas-enredo que exaltam a cultura negra ao longo da história dos desfiles: https://open.spotify.com/user/bookersinternational/playlist/3j55vLtP5E99FNQnEN6qsq

24 de nov de 2017
1 COMENTÁRIO
  1. Esqueceram de citar que 1960 o Salgueiro abriu o caminho com Zumbi dos Palmares pelas mãos de Pamplona e Arlindo começando a grande revolução na CRIAÇÃO DE ENREDOS E MUDANDO DE FORMA DEFINITIVA A ESTÉTICA DO DESFILE

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