Escolas de samba cantaram a esperança que trazia a Constituição de 1988

Nesta sexta, dia 5, completamos 30 anos da promulgação da Constituição Federal, a chamada Constituição Cidadã que vinha com uma série de direitos e liberdades que a Ditadura Militar havia surrupiado primeiro em nome da família e depois por “questões econômicas”. Os carnavais entre 1986, quando se instalou a Assembléia Nacional Constituinte e 1989, meses depois da promulgação, trouxeram alguns desfiles que sintetizavam a esperança do povo no futuro do país. Vamos rever alguns destes momentos. Alguma profecia se cumpriu?

  1. PORTELA: MORFEU E A UTOPIA BRASILEIRA (1986)

Ainda com o grande Mestre Marçal no comando da bateria, a Águia veio para o Carnaval de 1986 num tom um tanto pessimista, na medida em que imagina um país menos desigual ser possível apenas em sonho. Apesar da mensagem algo distópica, o tom do desfile foi bem humorado como na frase que iniciava o refrão: “No país da bola, só deita e rola quem vem com dólar”.

  1. IMPÉRIO SERRANO: EU QUERO (1986)

 O Império tinha um dos sambas mais festejados do ano. As escolas de samba estavam enebriadas com o fim de censura nas letras. Só que ao contrário da Portela, a Serrinha estava toda esperançosa: o enredo era uma série de desejos ao gênio da lâmpada em relação ao Futuro do país. “Quero que meu amanhã, seja um hoje bem melhor”. Decretando o que se queria ver longe: “chega de ganhar tão pouco, chega de sufoco e de covardia. Me dá me dá, o que é meu, foram 20 anos que alguém comeu”, em referência à ditadura militar. A escola foi a 3ª colocada.

  1. SÃO CLEMENTE: POUCA SAÚDE, MUITA SAÚVA OS MALES DO BRASIL SÃO (1986)

 A escola de Botafogo fez um contundente manifesto contra o péssimo estado da Saúde no Brasil, chamando de “saúvas” aqueles que desviam dinheiro. “Desperta Brasil desse coma entre vorazes tubarões” começava o samba e pedia que o país “matasse” as saúvas antes que elas acabassem com tudo. Lembrou o surto de malária que atingiu o sudeste do país naquele ano e a penúria do sistema de saúde: “Fila pra cá, briga pra lá pra marcar a hora certa do defunto desfilar”. Alguma semelhança com os tempos atuais? L Com essa apresentação, a escola carimbou seu passaporte para a elite do samba.

  1. CAPRICHOSOS DE PILARES: EU PROMETO (1987)

 A Caprichosos de Pilares dividia com a São Clemente a primazia de fazer enredos satirizando as mazelas do país. Em 1987, a Assembléia Nacional Constituinte estava instalada e começando a funcionar. A escola fazia uma cobrança clara: “espero da Constituinte em minha mesa muito pão, uma poupança cheia de ‘cruzados’ e um carnaval com muita paz no coração”. O enredo criticava os políticos que vivem de fazer promessas e não as cumprem. O desfile trazia na comissão de frente o personagem de Chico Anysio chamado Justo Veríssimo, um deputado que tinha como bordão “Tenho horror a pobre”. O enredo criado por Luiz Fernando Reis também conclamava as pessoas a fiscalizarem os políticos: “Vamos, meu povo, democracia é participar. Vote, cante, grite, é tempo de mudar.”. E no final a cobrança: “seu deputado eu votei, agora posso exigir, quero ver você cumprir”.

  1. SALGUEIRO: E POR QUE NÃO? (1987)

 A vermelho e branco da Tijuca fez um desfile com um belo samba da dupla Bala e César Veneno que era uma injeção de ânimo em um país que ainda lutava para curar as mazelas histórias,  “salgueirando a humanidade” e pedindo: “vai à luta, o que deve ser teu, será” e as expectativas nem eram tão grandes assim: saúde para cultivar a sua própria terra. Na conclusão, o samba dizia: “O paraíso está na terra e por que não acreditar, é acabar com as guerras e vamos viver de amar”.

  1. SÃO CLEMENTE: CAPITÃES DO ASFALTO (1987)

 Ao voltar para o Grupo Especial (que na época chamava 1-A), trouxe um samba que já nasceu clássico sobre a situação dos menores pobres. O título do enredo faz uma alusão ao livro de Jorge Amado sobre os menores de rua em Salvador (os Capitães de Areia). No Rio, eles vendiam balas no trem ou pediam esmola: “Seu moço me dá um trocado, quero comer um pão”. O desfile falou da desigualdade social, econômica, da falha do sistema de educação, com um abre-alas que mostrava uma praça, com crianças dormindo no banco. A conclusão do enredo todo mundo conhece: “se hoje ele é mal orientado, será marginalizado nas manchetes de amanhã”.

  1. UNIDOS DA TIJUCA: O TEMPLO DO ABSURDO (1988)

A ideia da Tijuca era fazer um enredo sobre “a mesa de bar” onde se discute de tudo, o futebol, as brigas “com a patroa em casa” e, claro, a situação do Brasil. Naquele ponto, a Constituinte entrava na reta final e o Plano Cruzado para conter a inflação havia fracassado, transformando questões como congelamentos, dívida externa, os salários defasados, em temas correntes. A comissão de frente era formada por marajás, o termo cunhado pelo então governador de Alagoas Fernando Collor para denominar os corruptos. E o samba perguntava: “aonde a coisa vai parar?”

  1. MOCIDADE: BEIJIM, BEIJIM, BYE, BYE BRASIL (1988)

 O genial carnavalesco Fernando Pinto produziu vários desfiles futuristas. Este é uma espécie de desfile póstumo, porque Fernando morrera meses antes num acidente de carro na Avenida Brasil. O enredo promulgava a Constituinte Independente de Padre Miguel, tornando o país livre de suas chagas. O samba criava todo um cenário fictício para este Brasil que emergeria da “nação naufragada” e comemorava “e hoje nem saudade, daquele Brasil devedor”. A comissão de frente era formada por negros altos e de peruca loira no estilo da então rainha dos baixinhos, Xuxa Meneghel que sempre encerrava seus programas na TV dizendo “beijim, beijim, tchau, tchau”.

  1. MANGUEIRA: 100 Anos de Liberdade, Realidade ou Ilusão (1988)

No ano do centenário da abolição, duas escolas abordaram o tema, o antológico desfile da Vila Isabel do qual falamos na semana passada, e a Mangueira que atacava mais diretamente o preconceito racial e social. Será que a Lei Áurea não foi o fim da escravidão? O refrão era de uma força incrível e emocionou muito quem estava na avenida: “pergunte ao criador, quem pintou essa aquarela, livre do açoite na senzala, preso na miséria da favela”. A verde e rosa foi vice-campeã e por muito pouco não tirou o título da Vila.

  • VILA ISABEL: DIREITO É DIREITO (1989)

Desfilando como campeã em 1989, com uma comissão de frente de mulheres grávidas, a Vila Isabel homenageou os 40 anos da Declaração Universal dos Direitos do Homem e aproveitou para cobrar tudo o que a democracia prometeu ao povo na transição da ditadura para a Nova República. “É hora da verdade, a liberdade ainda não raiou (…) viver com dignidade não representa favor. ”

Às vésperas das eleições, 30 anos depois, vemos que pouco daquelas sonhos viraram realidade e o Brasil de hoje se parece muito mais com aquele do que a gente gostaria de admitir. Deixo aqui a letra completa desta último samba como reflexão para todos que vão às urnas neste domingo. Boa sorte a todos nós.

É hora da verdade

A liberdade ainda não raiou

Queremos o direito de igualdade

Viver com dignidade

Não representa favor

Hoje, a Vila se faz tão bonita

E se apresenta destemida

Unida pelos mesmos ideais

Lutando com a maior sabedoria

Contra os preconceitos sociais

A Declaração Universal

Não é um sonho, temos que fazer cumprir

A justiça é cega, mas enxerga quando quer

Já está na hora de assumir (eu sei)

Sei que quem espera não alcança

Mas a esperança não acabará

Cantando e sambando acendo a chama

E sonho um novo dia clarear

 

Clareou

Despertou o amor, que é fonte da vida (bis)

Vamos dar as mãos e lutar

Sempre de cabeça erguida

 

E quando o amanhã surgir, surgir

A flor da paz se abrir, se abrir

Será prosperidade

A brisa vai trazer mais alegria

No mundo haverá fraternidade

 

Direito é direito

Está na declaração (bis)

A humanidade

É quem tem razão

05 de out de 2018

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