Entroncamento entre a Marquês de Sapucaí e a Presidente Vargas

O desfile de escolas de samba talvez seja o único grande espetáculo no mundo em que o “elenco” completo se reúna apenas na hora da apresentação. Sim, há ensaios de segmentos, alas coreografadas, bateria, baianas. Todos treinam muito. Mas também há as alas comerciais, formadas em parte até por turistas que chegam do exterior e se juntam à festa ali, na hora de se apresentar. A pergunta óbvia é: como pode isso dar tão maravilhosamente certo? A resposta tem um nome: concentração.

João Saldanha era cronista esportivo e tido como o responsável pela montagem da seleção brasileira de 1970. Não foi pra Copa por divergências com a ditadura. Uma de suas frases famosas era: “Se concentração ganhasse jogo, o time da penitenciária não perdia uma”. Pode ser que times de futebol não se beneficiem tanto disso, mas para o carnaval, a concentração é fundamental.

Não, os componentes não precisam estar com o espírito de um bailarino do Cirque Du Soleil, afinal estamos no carnaval. Eu me refiro à area fora da avenida de desfiles onde as escolas ficam antes de apontar lá no Setor 1.

Chama-se de Concentração as pistas da Avenida Presidente Vargas que ficam mais próximas ao Sambódromo.  O espaço ocupado ao longo do ano por ônibus, táxis, lotações e carros, durante o carnaval vira uma espécie de grande coxia a céu aberto para o maior espetáculo da Terra. Ali as escolas de samba se arrumam para “entrar na avenida”. Vamos ver como funciona?

A ordem de desfile determina o lado da concentração. Imagine-se no início da pista do Sambódromo de frente para a Praça da Apoteose: as escolas que desfilam nas posições ímpares, se arrumam “nos Correios”, ou seja, vêm da direita, do lado dos setores pares, no trecho da pista que vem do bairro rumo ao Centro e tem o prédio dos Correios como referência; as escolas nas posições pares vêm do “Balança”, ou seja, ficam no pedaço da pista depois do Setor 1 e se arrumam na parte que vem da Central do Brasil, tendo como grande ponto de referência um enorme prédio apelidado de Balança Mas Não Cai.

Carros da Grande Rio na concentração no carnaval de 2013 / Foto: Jonas de Carvalho – Wikimedia

Os carros alegóricos saem dos barracões e vão se posicionando na concentração na ordem em que vão entrar na avenida. Eles chegam durante o dia. Então os pedestres podem admirá-los durante o dia, para ter um gostinho, ainda que incompleto, do que passará na avenida. Desde que o Sambódromo passou a cobrar preços de espetáculo, esse é o principal contato do povão com as alegorias.

Em média, cerca de 4 horas antes do desfile, compontentes começam a chegar na área da concentração reservada a cada escola. Procuram seus diretores de ala para saber a ordem em que vão desfilar. A bateria começa a esquentar as turbinas por ali mesmo. No fundo, a concentração é o início de uma grande festa. Amigos se reencontram, amizades nascem. Para quem gosta de encher a cara uma dica: disfarce bem, pois se o seu diretor de ala perceber que você está embriagado, pode não permitir que você desfile.

A Concentração também é local de trabalho. Por questões orçamentárias ou de organização, não é raro ver carros alegóricos recebendo as decorações finais ali ou testando algum mecanismo, gente costurando a fantasia, a porta-bandeira vestindo seu traje, assim como alguns foliões que desfilam em mais de uma agremiação.

Em 1989, a Portela levava para a avenida pela primeira vez uma Águia que simularia alçar voo. Era um mecanismo de grua razoavelmente simples. Quando ele foi testado na concentração, o público e os componentes se emocionaram. Era a primeira águia a alçar voo. Isso marcou a memória de vários torcedores!

[su_youtube_advanced url=”https://www.youtube.com/watch?v=jztLY_X6CKw”]

Desfile da Portela em 1989, com a alegoria em que a águia veio sobre uma grua

Quando vai se aproximando a hora do desfile, uma sirene avisa que a escola tem de avançar para mais perto da entrada da pista do Sambódromo. É hora dos guindastes começarem a içar os destaques para o topo das alegorias. A esta altura as alas precisam estar organizadas na ordem do desfile.

Assim que a escola anterior acaba de passar toda pela linha que marca o meio da avenida, os portões que ficam antes dos setores 2 e 3 se fecham e a agremiação que espera na concentração é autorizada a avançar para a área de armação. A bateria entra primeiro, faz uma performance para a plateia do Setor 1 e se posta no primeiro boxe, ao lado do carro de som, de onde vão apoiar a entrada da escola até se integrarem ao cortejo. Em seguida, entram a comissão de frente e o Abre-Alas e as alas posteriores.

O clima de expectativa que domina a fase de Concentração vai se tornando aquela ansiedade gostosa à medida em que a escola avança e se posiciona para entrar. Quando o samba é popular, as alas começam a cantá-lo mesmo antes do puxador.

É bom sempre ter em mente a geografia da avenida. A Concentração fica perpendicular à Sapucaí e uma escola não cabe inteira naquele espaço inicial da armação. Então, parte do contingente permanece na Presidente Vargas até o início da apresentação. Quando toca a sirene na área de armação, o povo sabe. Vai começar!

Todo mundo que gosta de samba deve estar familiarizado com a canção Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida, de Paulinho da Viola, referindo-se a um desfile da Portela. Pois bem, a imagem é muito pertinente e fica mais clara quando você está no entroncamento entre a Concentração e a pista de desfile. Os componentes vão em linha reta até virarem para entrar na pista. Esse é o legítimo “entrar na avenida”, como a água de um rio que faz curvas para seguir seu curso natural.

A imagem é poética, mas o nome popular para esta manobra é Joelho. Porque é isso mesmo: uma virada de 90 graus. Para pessoas, isso é fácil, já para carros alegóricos, nem sempre. Há inúmeros casos de eixos de alegorias que quebraram, emperraram, etc na hora de virar pra entrar na pista. Às vezes, lá na frente, uma ala correu mais, abriu um buraco, o resto da escola se apressa e um destaque que ainda estava sendo içado para o seu queijo, perde a carona e não desfila ou vai no chão, o que pode custar algum décimo para a escola em enredo.

O caso mais grave ocorreu no Carnaval de 2017, quando o último carro da Tuiuti fez a curva, quebrou o eixo e, acabou imprensando jornalistas contra a grade do Setor 1. Uma pessoa morreu, depois de ficar hospitalizada alguns dias. Por essas e outras, o Joelho pode decidir um carnaval ou arruiná-lo.

[su_youtube_advanced url=”https://www.youtube.com/watch?v=i5xl0eD_ZYQ”]

O acidente com o carro do Tuiuti em 2017

As escolas que se concentram do lado do Balança têm uma preocupação extra. O Viaduto São Sebastião, que liga o Túnel Santa Bárbara com o outro lado da Presidente Vargas. Ele representa um obstáculo importante para os carros alegóricos por causa da altura. Toda escola que desfila em posições pares, precisa calcular direito para evitar que suas alegorias acabem entaladas.

As opções são: criar um mecanismo que permita uma parte do carro subir depois de passar pelo viaduto ou montar uma parte do carro depois de ultrapassar a barreira. Algumas vezes a operação demora mais que o esperado ou não dá certo, causando problemas no desfile.

Escolas com grandes chances de ganhar o Carnaval perderam pontos preciosos por causa de alegorias que se deram mal no Joelho.

Manobras tensas à parte, o Joelho não é só vilão: a mudança de sentido provoca um efeito mágico. Você está numa área com iluminação de rua, mais escura, cantando o samba e avançando. De repente, você muda de rumo e dá de cara com o M da Apoteose lá no fundo e um palco todo iluminado. O coração bate mais forte e a emoção toma conta dos componentes. Você acabou de virar um ator no maior espetáculo da Terra.

[su_youtube_advanced url=”https://www.youtube.com/watch?v=5ruAhtlKgHI”]

Documentário sobre os bastidores do desfile

A foto da Wikimedia segue a licencença Creative Commons 2.0 (link) https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0/deed.en

08 de fev de 2019

COMENTÁRIOS