Diversidade religiosa, orgulho e protestos dominam sambas da Série A

Inocentes de Belford Roxo | Foto: Paulo Portilho – Riotur

Se você já ouviu ou leu por aqui as reclamações das escolas do Grupo Especial sobre a falta de verbas e o jogo desleal da Prefeitura, multiplique por cinco e terá ideia do aperto por que passam as escolas da Série A, o principal dos 4 grupos de acesso do carnaval carioca. Algumas estão sem quadra, outras sem barracão. Já os sambas, ah, os sambas…

A safra de enredos 2019 da Série A tem uma predominância clara: exaltação à diversidade religiosa, pedindo respeito aos cultos de matriz africana, mas com espaço também para os outros credos. Os sambas têm várias passagens em tom de lamento, outros de reivindicação e sempre com espaço para a crítica, resgatando de vez o sabor do samba engajado, mas sem ser panfletário. Só que ao contrário dos anos 80, quando o humor prevalecia, dessa vez existe um sentimento mais profundo, mais próximo do sofrimento.

Ainda não ouvi nenhum deles cantado ou tocado ao vivo, portanto as impressões aqui são exclusivamente a partir das gravações do CD oficial. Três sambas me chamaram atenção logo de cara. O da Acadêmicos de Santa Cruz tem uma letra forte, bem construída para homenagear a atriz Ruth de Souza, de autoria de Samir Trindade (compositor portelense), Elson Ramirez e Júnior Fionda:

Talento é dom pra vencer

Preconceito não pôde calar

Foi preciso acreditar

Menina mostra a força da mulher

O negro pode ser o que quiser

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Outra música que a gente ouve e dá vontade de ouvir de novo e de novo é o samba do Cubango. O enredo é originalíssimo: sobre objetos de poder, para pedir proteção, de pagar promessas, ou aqueles que prometem milagres. A escola quer mostrar “a alma das coisas”, os igbás ou cabaças dos assentamentos, figas, balagandãs, amuletos indígenas, carrancas, ex-votos do catolicismo, velas. A composição escolhida tem dois refrões fortes, fáceis de cantar, que devem render uma bela harmonia à verde e branco de Niterói.

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Outro enredo original é o da Unidos de Bangu, que fala da história das raízes, que alimentaram tanto nobres como plebeus, o mote de Do Ventre da Terra , Raízes para o Mundo,  que tem um refrão reivindicador e interessante:

Vamos plantar a paz

Chegou minha raiz

O caldeirão vermelho

Cresceu e não se desfaz

Alimenta esse povo

Ainda na linha reivindicação contra o preconceito há o samba da Rocinha, de autoria de Claudio Russo, Diego Nicolau, entre outros, parceria que assina mais de um samba no CD, e que escancara logo de cara a que veio:

Voa liberdade!

Entra na roda Sinhá

Meu povo quer igualdade, respeito

Essa luta é tanto sua quanto minha

Vai ter quizomba

No Quilombo da Rocinha

A Unidos de Padre Miguel, que tem batido na trave nos últimos anos, vai fazer  homenagem a Dias Gomes, mas usando como recorte os personagens dele e não sua biografia. Como resultado, um samba de passagens melódicas originais, valorizadas pela interpretação de Pixulé e uma letra com duplo sentido bem carnavalesco, como neste pedaço que cita o personagem de “O Pagador de Promessas”:

Zé, nada muda nessa terra

Continuam as promessas

Pátria mãe da ignorância

Zé, nessa cruz que tu carregas

Pesa a fé do opressor

Fardo da intolerância

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No campo da fé, vale citar duas composições que falam de diversidade religiosa. O enredo da Estácio gira em torno da estátua do Cristo Negro, resgatada do mar por pescadores no Panamá, uma história cheia de significado místico. A música tem passagens melódicas de lamento, onde cabem exortações à Maria, ao Nazareno e a identificação natural de um Cristo Negro com a cultura africana.

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Mostrando o espaço que existe para a diversidade religiosa entre as escolas, a Unidos da Ponte, de volta à Sapucaí depois de vários anos, reedita um antigo enredo que lista as oferendas para os principais orixás do candomblé e é um clássico do samba-enredo que as novas gerações poderão conhecer. Ele foi cantado originalmente no desfile do Grupo Especial em 1984, ano de inauguração do Sambódromo.

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Um samba divertido, leve é o da Inocentes de Belford Roxo de estilo empolgação que relembra o hábito nordestino de enterrar tesouros nos quintais em frascos. O enredo fala desta tradição a partir do bando de um nordestino muito famoso, o cangaceiro Lampião, que, além da face conhecida, seria também um incentivador de artistas populares. Sutilmente, o enredo critica ainda a corrupção em um refrão que gruda:

Traz a sacola, põe no pacote

Não é do povo esse novo bandoleiro
Não tira a boca da botija e quer o dote

Dá no cangote do inocente brasileiro.

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Porto da Pedra vai homenagear o ator Antonio Pitanga e o samba divide paixões. Alguns o acham muito bom, outros reclamam que a escola eliminou durante seu processo de escolha um dos melhores sambas do carnaval. Particularmente, não me chamou a atenção.

Alegria da Zona Sul faz uma homenagem à umbanda com um samba de embalo, redondinho, mas pouco original; o Império da Tijuca vai homenagear o Vale do Café, região do estado do Rio onde ficam cidades como Barra Mansa, Piraí, Vassouras, todos à beira do rio Paraíba do Sul. Também, sem grande brilho.

A Renascer de Jacarepaguá repetiu a encomenda do samba a Claudio Russo, Moacyr Luz e Diego Nicolau e fala da Bahia. Mesmo sem obter o mesmo resultado de anos anteriores, tem uma melodia agradável, com a letra bem colocada e deve passar bem na avenida.

Finalmente, a Acadêmicos do Sossego foi buscar um personagem controverso, Jesus Malverde, santo popular cultuado no México e que roubava dos ricos para dar aos pobres. Dado como “abençoado” pelos mais humildes, obviamente atacado por sua atitude à la Robin Hood. A história serve de metáfora para uma realidade muito presente no cotidiano do Rio, dividido entre católicos, evangélicos em oposição aos cultos de matriz africana. Apesar da melodia não ser tão inspirada, a letra traz momentos contundentes como esse, que podem estimular o canto do componente que se identificar com a mensagem:

Bom Deus, por que o ódio no planeta azul?

Se crentes ou ateus no sangue a mesma cor

Na mesquita, no templo, no terreiro

O mesmo sentimento de aliança

De forma geral, o CD da Série A é muito bem feito, mesclando um pouco o estilo das gravações tradicionais, com coro mais agudo e uma percussão sem o mesmo do Especial, em que há maior número de músicos. O resultado é um conjunto agradável de se ouvir, com arranjos caprichados. Vale ter na prateleira ou SALVAR NA LISTA DO SPOTIFY.

 

Foto de capa: Riotur

20 de dez de 2018

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