Contos de ressurreição na história das escolas de samba

Estamos no fim da Quaresma e o Carnaval 2018 vai ficando atrás da curva. Para quem cultiva a tradição religiosa, o principal sentido da Páscoa não é o chocolate, mas a ressurreição, renovação. As escolas de samba também guardam histórias que percorrem a trajetória do purgatório à glória em um (relativamente curto) espaço de tempo. Quando o rebaixamento foi cancelado este ano para beneficiar a Grande Rio, todos lembraram imediatamente de duas dessas histórias.

A primeira ocorreu no ano de 1981: o Império Serrano fizera um desfile luxuoso mas totalmente confuso do ponto de vista de evolução, tanto que demorou para entrar na pista e estourou o tempo de. Acabou na última colocação e, pela segunda vez na história, seria rebaixado para o acesso, então chamado de Grupo 1-B. Naquele ano, várias escolas reclamaram do excesso de invasão na pista. O público literalmente espremia o cortejo e o Império alegou que, em parte, seu estouro de cronometragem deveu-se a isso. Resultado: ninguém foi rebaixado e o desfile de 1982 teria 12 escolas.

Em 1982, o regulamento trouxe uma novidade: por causa do acidente com um destaque que caiu de um carro alegórico no ano anterior, nenhuma alegoria poderia ter figuras vivas. A então bicampeã Imperatriz de Arlindo Rodrigues e a Beija-Flor de João 30 afrontaram o regulamento e levaram destaques vivos sobre seus carros. O Império Serrano respeitou a norma. Mais que isso, tinha um tema interessante: celebrava os carnavais de antigamente e criticava já naquela época as “Superescolas de samba S/A” (alusão à Beija-Flor, Imperatriz e Mocidade, que começavam a ameaçar o reinado das quatro mais tradicionais Portela, Mangueira, Salgueiro e o próprio Império).

O samba era de muito longe o mais popular do carnaval: Bum, bum, paticumbum, prugurundum, para o enredo de duas jovens carnavalescas, Rosa Magalhães e Lícia Lacerda. Debaixo de um sol enorme, as arquibancadas ecoaram o refrão do samba e o Império saiu do último lugar para ser o grande campeão de 1982, até porque a Imperatriz perdeu pontos e acabou em terceiro lugar.

O lendário desfile do Império. Repare que o público começa a cantar até mesmo antes da escola basta o acorde do cavaquinho: 

Por falar em Imperatriz. No ano de 1988, a escola passou por um choque estético.  Seu carnavalesco, responsável pelos até então únicos dois títulos da agremiação, Arlindo Rodrigues, morrera prematuramente aos 56 anos depois do carnaval do ano anterior. Para mudar de ares, a direção chamou Luiz Fernando Reis, o carnavalesco da Caprichosos de Pilares, escola pequena que havia se consagrado pelo estilo bem-humorado e crítico. Ele tentou levar esta nova abordagem para a escola, fazendo um enredo sobre corrupção e com esperança de melhorar (já naquela época!) por causa da Constituição, que seria promulgada em outubro daquele mesmo ano. A proposta não bem assimilada por componentes e diretoria. A escola desfilou preguiçosa, com problemas de evolução e perdeu muitos pontos de cronometragem por ter estourado 9 minutos o tempo de desfile. Ficou, claro, na última posição. De novo, houve polêmica sobre a cronometragem e ninguém caiu.

Em 1989, a Constituição havia sido promulgada e a República completaria 100 anos em novembro. A Imperatriz resolveu fazer sua homenagem, num estilo de enredo clássico, mais adequado à escola, com assinatura de Max Lopes. Tinha o samba mais popular de sua história, com um refrão largamente cantado pelo público do Sambódromo: Liberdade, liberdade, abra as asas sobre nós e que a voz da igualdade, seja sempre a nossa voz…  

Naquele mesmo dia de desfile a Beija-Flor faria o seu desfile mais antológico: Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia, de Joãosinho Trinta com seu Cristo Redentor coberto em plástico rodeado por uma ala de mendigos. Parecia barbada para a azul e branco de Nilópolis. Na apuração, as duas empataram. O regulamento previa para desempate que as notas descartadas voltassem a ser consideradas. O jurado de samba-enredo João Máximo implicou com o refrão, “Leba-larô, ebolê abará, laiá laiá, ô…” e havia dado 9 à Beija-Flor (na época não havia notas fracionadas). Resultado: Imperatriz campeã! Ninguém jamais esqueceu nem o samba-enredo da Imperatriz, que foi o único exemplar do gênero a ser usado como tema de abertura de uma novela (Lado a Lado), nem o desfile da Beija-Flor.

O desfile da Imperatriz em 1989: 

O tempo passa e, em 2017, a modesta Paraíso do Tuiuti ganha nova chance de desfilar no Grupo Especial. Apresentou um enredo sobre os 50 anos da Tropicália, assinado pelo talentoso carnavalesco Jack Vasconcelos, e um dos melhores conjuntos alegóricos de todo o desfile. A última alegoria da escola, com uma enorme Cármen Miranda, teve problemas na manobra da curva da Sapucaí, quebrou o eixo e atropelou várias pessoas. Uma jornalista, que foi esmagada contra a grade, morreria alguns meses depois no hospital.

Quando os envelopes foram abertos a surpresa. As notas dos jurados refletiram muito pouco do que foi apresentado, deixando a agremiação no último lugar, à frente, inclusive, do desastroso desfile da Tijuca, que teve um desabamento de carro alegórico na concentração e, por conta disso, problemas gravíssimos de enredo, evolução, harmonia… Por causa da Unidos da Tijuca, mesmo antes dos envelopes serem abertos, já se sabia que ninguém iria cair.  

Para 2018, a Tuiuti se preparou ainda melhor. Encomendou um samba sob medida para outro enredo de Jack, Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão? Quem acompanha os preparativos da escola conhecia o talento do carnavalesco e a qualidade do samba, mas o que aconteceu na avenida no dia do desfile foi mágico. Com uma comissão de frente de escravos, feitores e pretos velhos, a azul e ouro deixou a Sapucaí de boca aberta. O samba pegou na veia e as pessoas se divertiram muito com as fantasias dos “manifestoches” e sobretudo o destaque batizado de Vampiro Neoliberal, representando o presidente Temer.

Escolados pela experiência do ano anterior, os torcedores da escola e o mundo do Carnaval, imaginavam uma colocação melhor, mas estavam céticos com o resultado apesar da apresentação magnífica e a enorme repercussão obtida pelo desfile, inclusive na imprensa internacional. Na apuração, a gratíssima supresa. Tuiuti vice-campeã do Carnaval 2018. Para eles, foi o mesmo que um título.  E todos lembraram do refrão do samba cantado na primeira vez em que a escola desfilou no Grupo Especial, em 2001: Tu és meu sonho Tuiuti, tens um destino a cumprir, é brilhar no Carnaval, no desfile principal, todo o povo a te aplaudir.

Estava escrito. Não foi em 2001, mas em 2018.

Pra lembrar do desfile da Tuiuti: 

29 de mar de 2018

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