Beija-Flor narra as glórias dos 70 anos da escola no Carnaval 2019

Foto: Gabriel Monteiro | Riotur

Surpreendente, luxuosa, delirante, poderosa, polêmica: a Beija-Flor desperta paixão e até ódio em alguns, mas indiferença dificilmente é um sentimento que alguém dedica à azul e branco de Nilópolis. Como força do carnaval que é, a escola optou por celebrar seus 70 anos de história no desfile de 2019.

Foi a última agremiação do Grupo Especial a divulgar sua sinopse. “Quem não viu, vai ver… as fábulas do Beija-Flor” é uma homenagem que a escola faz a alguns de seus momentos memoráveis, desde que deixou de ser uma obscura agremiação da Baixada Fluminense, que fazia enredos chapa branca do governo de ocasião, para revolucionar os desfiles.

A comissão de carnaval nilopolitana é composta por Cid Carvalho, Victor Santos, Bianca Behrends, Leo Mídia e Rodrigo Pacheco. Eles adotaram uma abordagem não convencional e não-linear, o que é um acerto: resgata a memória da escola por meio de uma releitura contemporânea e fabular dos enredos mais marcantes.

Segundo a justificativa do enredo, quem não viu, vai ver, e quem viu, poderá novamente se emocionar com As Fábulas do Beija-Flor, uma coletânea das aventuras conduzidas pelo voo do pássaro-símbolo da Escola e narrador-personagem dos enredos.

Aliás, o outro acerto da escola é apelar para a emoção, algo que deu muito certo em 2018, quando apareceu na avenida com um visual muito diferente daquele com que acostumou o público, um enredo um tanto confuso, mas apoiada por um samba muito forte e pela emocionada participação dos componentes, uma das maiores forças da máquina de vencer desfles em que se transformou a Beija-Flor.

Vídeo mostra trechos dos desfiles de 1977 e 1978 da Beija-Flor:

O texto usa e abusa de trechos felizes de sambas-enredo da escola para conduzir o leitor por uma narrativa pontuada de poesia, em que o Beija-Flor protagonista tem como interlocutor uma vovó, aquela com que nos acostumamos desde criança a ouvir fábulas, mas também a personagem do enredo de 1977, segundo título da escola (Vovó e o Rei da Saturnália):

Uma lágrima sentida caiu dos olhos da Vovó, lembrando imagens de crianças e do velho tempo que passou. Olhem o céu que maravilha! Retalhos de nuvens, bordados de estrelas… Iluminada pelo sol da meia-noite, a natureza vem mostrar sua beleza.

Pela porta da imaginação, galopando em cavalos alados, chegamos ao País das Maravilhas. Recebidos por soldadinhos de chumbo, entramos na floresta onde os animais falam e as plantas cantam; tudo neste mundo é encantado!

Os grande enredos a serem celebrados foram agrupados por afinidade temática e esta primeira faz menção mais diretamente aos enredos delirantes de Joãosinho Trinta, o carnavalesco vindo do Salgueiro e que fez a Beija-Flor subir de patamar como escola de samba. São desta fase o título de 1977, o de 1980, O Sol da Meia Noite, sobre o universo infantil, e o de 1991, Alice no Brasil das Maravilhas.

O belo desfile de 2008 sobre Macapá:

A segunda parte se dedica aos enredos regionais, filão que a Beija-Flor explorou com sucesso no final dos anos 1990 e na década seguinte. Foram homenageados o Pará (1998), Araxá (1999), Manaus (2004), as Missões do Rio Grande do Sul (2005), Poços de Caldas (2006), Macapá (2008) e São Luís (2012).

Este trecho da sinopse introduz os desfiles de vertente africana:

Iluminado feito um festival de prata, subirei ao Orum sagrado dos Nagôs, e descortinarei a reluzente constelação das estrelas negras para resgatar as nossas diversas Áfricas: a de lá e as de cá. Guiarei um cortejo de reis, rainhas e guerreiros negros, aqueles que romperam grilhões e carregaram nos ombros, marcados pelas chibatas, a opulência do nosso país, mas que sempre ficaram esquecidos nas savanas da memória oficial.

O inesquecível Agotime (2001):

Fazem parte desta história da Beija-Flor enredos como o inesquecível desfile de 1978 sobre a criação do mundo segunda a tradição Nagô, quando a escola obteve seu primeiro tricampeonato, o contundente (e injustiçado) desfile de 2001 sobre a sage de Agotime, uma guerreira, e até mesmo o enredo de 2015 que foi alvo de ferozes críticas por falar sobre a Guiné Equatorial e receber apoio de um governo ditatorial.

O Beija-Flor narrador nos levará dali para as histórias da cultura brasileira, lembrando as homenagens a personagens como Pelé e Clementina de Jesus (do controvertido título de 1983), Roberto Carlos, da vitória de 2011, de Margaret Mee e Bidu Sayão, temas de 1994 e 1995, sob a batuta de Milton Cunha, e até mesmo o Marquês de Sapucaí, que emprestou o título à avenida mágica dos desfiles (o tema de 2016).

A cantora lírica Bidu Sayão, com mais de 90 anos, consagrada na avenida (1995):

Por fim, a sinopse envereda pelos enredos mais críticos:

Porém, entristecido, constatarei que não somos o Brasil das maravilhas. Verei que os trabalhadores mais humildes continuam carregando o peso descomunal dos impostos, enquanto os “donos do poder” se esbaldam em farras bancadas com dinheiro público.

É a deixa para falar do desfile que fez dela a atual campeã, mas também de outros momentos memoráveis como o de 1979, Paraíso da Loucura e aquele que é, sem dúvida, o maior momento da Beija-Flor na era Sambódromo, Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia, de 1989, provavelmente o maior desfile a não ser campeão na era Sambódromo.

De forma simpática, o texto arremata de onde começou, no samba de 1977:

É bem verdade, Vovó, que de lá pra cá, tudo se transformou. Mas a vitória da folia ficou no encanto do meu povo, que brinca sambando quando samba a Beija-Flor!

O desfile vai passar pelos 14 enredos campeões e outros que obtiveram posição mais modesta. Senti falta, no entanto, do antológico O Mundo É Uma Bola, de 1986, quando a Beija-Flor se apresentou debaixo de um temporal, talvez o melhor exemplo da garra da comunidade da escola.

Ao longo da história, a azul e branco afilhada da Portela passou por três momentos distintos: o primeiro começou em 1976, com a chegada de João 30 e logo no primeiro ano o título com desfile em homenagem ao jogo do bicho que firmou as bases para o carnaval grande espetáculo, com muito luxo. O seu grande criador venceu 5 vezes e deixou a escola após o carnaval de 1992.

Entre 1994 e 1997 quem assinou os carnavais da escola foi Milton Cunha, com belas apresentações, mas sem títulos. A vitória voltaria, ainda que dividida com a Mangueira em 1998, já sob a batuta de Laíla, egresso do Salgueiro, que era um diretor de carnaval que apostou no instituto da comissão de carnaval, um grupo de artistas trabalhando e que rendeu as outras nove vitórias.

Laíla anunciou sua saída da escola logo depois do carnaval e agora vai comandar a Unidos da Tijuca. A Beija-Flor entra assim em uma nova fase, em que conta com a “onipresença” política de Aniz Abraahão David, o velho e alquebrado patriarca, e com a atuação cada vez maior de seu filho Gabriel, com o qual Laíla teria se desentendido.

Se a Portela criou o enredo, o Império Serrano solidificou o gênero musical samba-enredo, o Salgueiro aproximou as escolas da temática negra, João Trinta,  na Beija-Flor, as elevou à condição de espetáculo, criando histórias mirabolantes que abriram caminho para um sem número de possibilidades narrativas.

Acima de tudo, concorde-se ou não com algumas vitórias da escola, com quem a controla ou seu estilo, a Beija-Flor receberá uma homenagem merecida no seu aniversário de 70 anos. Os carnavalescos prometem devolver a escola aos seus momentos luxuosos para quem estranhou o visual de 2018. Será que ela consegue quebrar o tabu de nunca ter vencido desfilando no domingo?

O antológico Ratos e Urubus (1989):

03 de ago de 2018

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