Agronegócio resolveu pulverizar o desfile da Imperatriz

O Senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) propôs ao Senado na última quarta (11) a realização de uma sessão temática em plenário para se “investigar os motivos” (sic) que teriam levado a escola Imperatriz Leopoldinense “a autorizar um samba-enredo que denigre a imagem do agronegócio”. Caiado estranha em seu raciocínio que, diante de tantos problemas no Brasil, a escola tenha resolvido justamente “difamar o setor que deveria ser enaltecido” na Marquês de Sapucaí.

Seria inusitado se não fosse apenas mais uma dentro da enxurrada de reações de entidades ligadas ao agronegócio que condenaram o suposto ataque ao setor. O enredo da Imperatriz homenageia os índios e conta a história da criação do Parque Nacional do Xingu graças à luta dos irmãos Villas Boas.

O pedaço que mais irrita é esse:

Jardim sagrado, o caraíba descobriu
Sangra o coração do meu Brasil
O belo monstro rouba as terras dos seus filhos
Devora as matas e seca os rios
Tanta riqueza que a cobiça destruiu!

O trecho do samba é uma condensação de vários assuntos – aliás, samba-enredo é um gênero bastante particular porque requer poder de síntese enorme e, muitas vezes, seus autores recorrem ao duplo sentido. O caraíba é o branco e o enredo, obviamente, se refere à cobiça por terras da qual o índio foi vítima desde 1500. Qual a novidade disso? Quantos enredos já abordaram isso?

De acordo com a sinopse da Imperatriz, um dos setores do enredo se chama “os belos monstros”, que é um trocadilho com a Usina de Bela Monte e outras hidrelétricas que “roubaram as terras” indígenas por inundação. A escola aproveita e critica os confrontos entre índios e madeireiras, o uso de agrotóxicos que poluem os cursos de água e rios. O homem branco que derruba a floresta sempre em busca de mais terras avançando sobre território indígena. Logo, os belos monstros seriam ainda os tratores, motoserras e correntões que derrubam enormes áreas da Amazônia.

De acordo com as associações, as alas que mais ofenderam foram uma chamada de “Fazendeiros e Seus Agrotóxicos” e outra batizada de “doenças e pragas”. Eles alegam ser uma “um desserviço” atribuir as mazelas dos índios ao setor. Em entrevista ao Canal Rural, o direitor da Sociedade Rural Brasileira, Christan Lohbauer, considerou o discurso atrasado, preconceituoso, esquerdóide.

O primeiro ponto a se entender: o enredo é todo narrado sob o ponto de vista de um índio, então, claramente, a opinião sobre o que seja progresso não coincidiria com a de entidades do agronegócio. Dizer que a escola esteja chamando todos os agricultores de assassinos sanguinários é um exagero. Além disso, um enredo é um recorde e conta uma história ao longo do tempo. Se o agronegócio hoje não mata índios, houve muito conflito no passado. Ou não?

As manifestações começaram por meio de notas de repúdio, uma enxurrada de protestos na internet, promessa de uma campanha de marketing contra a escola e, antes do pronunciamento do senador, incluíram um “editorial” em um programa numa afiliada da Record em Goiás chamado De Olho nos Ruralistas. A apresentadora chegou a sugerir que os índios não tenham direito a remédios e morram de malária e febre tifóide, uma vez que rejeitam a tecnologia do homem branco, em grande parte provida pelo agronegócio. Veja você mesmo o tom da irritação da porta-voz dos ruralistas: http://bit.ly/2jO5RuB

Pode-se divergir ou concordar com a visão de mundo pregada pelo enredo. O carnavalesco Cahê Rodrigues rejeita a tese de que o enredo seja um ataque ao agronegócio. De qualquer forma, um desfile de escola de samba é um manifesto artístico, assim como um livro, um filme, uma peça de teatro. Tomar qualquer ação pra além da crítica ultrapassa o limite do debate e entra na seara da censura. Até segunda ordem, o Brasil ainda garante a liberdade de opinião.

Ironicamente, no ano anterior, a Imperatriz falou do homem do campo no enredo sobre a dupla sertaneja Zezé de Camargo e Luciano e, indiretamente, de toda a cultura tão cara ao agronegócio.

As escolas de samba, por serem manifestação popular, estão mais próximas do discurso das populações negra, índia e pobre. Mas não são “contra” o agronegócio. As entidades que hoje tentam constranger a Imperatriz já se esqueceram que a Unidos da Tijuca foi vice-campeã do carnaval de 2016 falando da pujança do agronegócio. Tinha até uma alegoria em forma de colheitadera.

Esqueceram-se também do belíssimo samba da Vila Isabel em 2013 que falava da poética vida do campo e com muita sutileza elogiava inclusive o uso de produtos que permitem mais alimentos na mesa dos brasileiros. A escola foi campeã naquele ano, patrocinada por uma multinacional produtora de agrotóxicos.

O mais estranho até agora é o silêncio da comunidade do samba e, em especial, da Liga Independente a respeito do assunto. Não foi emitida qualquer nota de apoio à verde e branco de Ramos.

O samba-enredo da Imperatriz está longe de ser meu preferido do ano, mas defendo até o fim a liberdade de uma manifestação artística. E vem cá, se podemos ter um enredo que chama o Brasil de celeiro do mundo, por que não outro que critica o tratamento destinado aos índios pelos brancos ao longo dos anos?

Samba-enredo da Imperatriz 2017:

13 de jan de 2017
4 COMENTÁRIO
  1. Tempos sombrios!
    Que o povo na Sapucaí abrace a Imperatriz em nome dá democracia e dá liberdade de expressão.

    Val7 anos atrásResponder
  2. A reação desmedida do setor ruralista, suas entidades e representação no congresso é típica de um país que vive em uma ditadura. Não me surpreenderá se medidas de retaliação contra a Escola forem tomadas no âmbito do judiciário, que serviçal que é deste governo de escessão. As outras escolas e suas organizações não podem se calar!

  3. Isso é uma forma de chamar a atenção para o enredo da Imperatriz, que tem um samba fraco, deelodia cansativa. Um enredo voltado para a “colonização dos portugueses” nos tempos atuais, mais do mesmo!

    Daniel7 anos atrásResponder
  4. Se tivessem metido a motoserra no saco e ficado calados teriam passado despercebidos. Botaram a boca no berrante resultado apareceram as mazelas e os malfeitos contra os povos indígenas praticados desde os idos de 1500. Para fechar com chave de ouro toda essa polêmica levantada pelo senador Caiado é vermos a Impertriz campeã do Carnaval carioca de 2017.

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