UPM vai levar Viúva Porcina, João Gibão e Odorico para a Sapucaí

A Unidos de Padre Miguel tem batido na trave há alguns anos. Desde 2015, vem fazendo desfiles consistentes sem conseguir a tão sonhada vaga para desfilar pela primeira vez no Grupo Especial na Era Sambódromo – a última vez que esteve entre as grandes foi em 1972, quando o desfile ainda ocorria na Presidente Vargas. E a aposta para o Carnaval 2019 aumentou.

Sem rebaixamento há dois anos no Grupo Especial, diminuíram os adversários com o nível de organização da UPM – só o Estácio é um concorrente frontal, que já teve experiência recente no desfile principal. Depois de um enredo primoroso e sofisticado sobre a lenda da ilha de Parintins, inspirado na obra de Milton Hatoum, a UPM optou por uma pegada de apelo pop para 2019, que pudesse ser comentada e compreendida mais facilmente pela comunidade da escola. Vai homenagear o dramaturgo e escritor Dias Gomes, criador de alguns dos personagens mais conhecidos do nosso cinema e da TV.

Foto: Divulgação

A sinopse escrita por João Gustavo Melo, que já fez parte do departamento cultural do Salgueiro, foi divulgada na semana passada e o texto deixa muito clara a intenção de falar da obra, dos personagens, não da biografia de Dias Gomes.

“Neste espaço sapucaisticamente concebido para laurear os grandes vultos e “acontecimentos deste pujante Brasil, elevo minha voz entusiasticamente para galardoar a obra de um apoteótico romancista, novelista e teatrista. Seu nome é no plural. Sim, no plural, porque não era apenas um. Era um bocado de gente que morava dentro de uma cabeça trepidante que vivia maquinando os causos e as astúcias de gente como eu, ou você, ou você e eu, e vice-versa. Um audaz dramaturgo cognominado Dias Gomes! Um valoroso artista, que com inventividade, prodigiosidade e, por que não dizer, vanguardisticidade, fez com que as histórias do seu povo corressem léguas e léguas por esse país de auriverde pendão.”

O carnavalesco João Vitor Araújo se apressou em afirmar aos compositores que o enredo é um recorte na imensa obra do dramaturgo, que ficou conhecido pelos personagens transpostos para a televisão, mas que foram concebidos inicialmente para o teatro. O próprio logo do enredo mostra a mandala utilizada na programação visual da novela O Bem Amado, um dos maiores sucessos de Dias Gomes.

A sinopse é relativamente curta e enfoca basicamente meia dúzia de obras, se considerarmos apenas o cinema e a TV. A primeira é O Pagador de Promessas, a história de Zé do Burro que é impedido pelo padre de entrar numa igreja para cumprir uma missão recebida de Iansã em um terreiro. O conflito entre a religiosidade africana e a cristã é o foco da obra, inicialmente uma peça, transposta para o cinema e depois exibida como minissérie na TV. O filme ganhou a Palma de Ouro em Cannes (a única da nossa história) e foi indicado ao Oscar.

A segunda parte do enredo foca-se nas duas obras que retratam a forma tradicional de se fazer política no Brasil, sintetizados pelos personagens Odorico Paraguaçu, o prefeito corrupto de O Bem Amado e de Roque Santeiro, o homem que era tido como herói e mito, explorado pelos políticos de Asa Branca. A novela teve uma versão em 1975 proibida pela censura da ditadura militar e foi ao ar pela TV Globo dez anos depois, imortalizando a dupla Regina e Lima Duarte nos papéis de Viúva Porcina e Sinhozinho Malta.

A terceira parte do enredo mistura outras duas obras e pode ser resumida em “samba, bicho e progresso”. Ela enfoca a novela Bandeira 2, sobre a motorista de táxi que também era porta-bandeira da Imperatriz Leopoldinense à noite. O personagem mais famoso da novela era o bicheiro interpretado por Paulo Gracindo, inspirado na peça O Rei de Ramos.  A parte do progresso fica por conta da novela O Espigão, sobre um empresário do setor de incorporações e que praticamente popularizou o termo “especulação imobiliária” no país.

A última parte do desfile é dedicado ao “realismo fantástico e apoteose do absurdo”, nas palavras de Araújo, remetendo à novela Saramandaia e seus personagens tão peculiares, como João Gibão, o homem com asas, Dona Redonda, a mulher que explodiu de tanto comer, o homem que virava lobisomen entre outros. O centro da história era a polêmica sobre o nome da cidade, que dividia a população entre aqueles que queriam manter o nome Bole-Bole e os “mudancistas” a favor do nome Saramandaia.

O mote geral da concepção, segundo o carnavalesco, está no fato de que as obras de Dias Gomes, não obstante terem sido escritas, há 30, 40 anos ainda têm tudo a ver com o Brasil atual e o próprio título já revela o tom de crítica contido no enredo da UPM: Qualquer semelhança não terá sido mera coincidência.

Homenagens a pessoas com carreira longa e vasta obra como Dias Gomes são sempre periogosas. A tentação é tentar abranger tudo: vida, obra, curiosidades, etc. Isso nem sempre dá certo e vira um longo desfile com fantasias de fácil identificação mas pouca coerência como enredo. Sob este aspecto, é muito bem-vinda a “ousadia” do carnavalesco de fazer um recorte determinado na obra.

A escolha das obras, a princípio, parece meio aleatória e não muito fácil de explicar, mas quando se lê o encerramento da sinopse (“E terminando sem mais retardamentos nem atrasamentos, eu me despeço com uma mensagem sobre todos aqueles que desafiarem a capacidade de criação popular da nossa gente: ELES SÃO MUITOS, MAS NÃO PODEM VOAR!”) e cruza a narrativa do enredo com os personagens da vida real no Brasil contemporâneo, nota-se a inteligência da crítica embutida no enredo. Deve vir por aí, mais um desfile potencialmente campeão da UPM. O Estácio que se cuide. 😛

Relembre o belo desfile da UPM no carnaval de 2018 sobre a Lenda do Eldorado Parintintim:

https://www.youtube.com/watch?v=Phwy8u6yuBk

 

22 de jun de 2018

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