Sambas em forma de oração se destacam na safra do Carnaval 2019

Capa do álbum oficial do Carnaval 2019

Como o Dia Nacional do Samba é neste domingo, chegou a hora de falar sobre a trilha sonora do desfile das escolas do Grupo Especial para o Carnaval 2019. Um preview das gravações com cerca de 3 minutos está rolando há alguns dias e mostra que nos dias 3 e 4 de março a Sapucaí vai ouvir um misto de reflexão, homenagens, crítica bem-humorada em uma safra algo irregular.

O mais curioso é o fato de que os cinco sambas pensados em estrutura de oração são os que mais se destacam. Os dois mais bem resolvidos em termos de letra e melodia são os de Portela e Unidos da Tijuca. A composição da Águia tem uma primeira parte em tom de lamento africano, fazendo uma modulação extremamente agradável depois do refrão em honra a Iansã, um dos orixás de Clara Nunes, a homenageada. Ela, aliás, é a narradora e não se resume a desfiar nomes de sucessos, mas faz uma correlação com o universo cultural cantado por ela, que tanta influência recebeu da Madureira que a recebeu.

O samba da Portela:

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A Tijuca tem a melodia inteira como um lamento, como, aliás pedia o enredo, de cunho rasgadamente cristão misturado à história do alimento mais universal, o pão, e um pouco de crítica social. As associações um pouco forçadas, naturais ao enredo, foram compensadas com uma melodia inspirada e refrões fortes que podem empolgar, principalmente os componentes, que já são muito bons de evolução.

O samba da Tijuca:

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Ainda na seara da “oração” temos a obra do inspirado enredo da Mangueira, recontando a história que o Brasil mal conhece através de heróis do povo relegados aos rodapés dos livros escolares. A letra é inspiradíssima e a melodia dá umas escorregadas aqui e ali, mas é um samba para guardar depois do Carnaval. Ele já evoluiu em relação à versão original do compositor, o que é um sinal auspicioso para a verde e rosa.

Tem sangue retinto pisado

Atrás do herói emoldurado

Mulheres, tamoios, mulatos

Eu quero um país que não está no retrato

Samba da Mangueira:

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A Mocidade Independente desponta com outra obra interessante com uma ode reflexiva sobre o tempo, com direito a canja de Elza Soares. Os refrões são animados e inspirados, especialmente o principal, que fala ao coração do torcedor independente (Senhor da Razão, A luz que me guia, nos trilhos da vida escolhi amar, estrela maior, paixão que inebria, eu conto o tempo pra te ver passar), assim como a melodia e a letra tem passagens que certamente vão ajudar o canto.

Samba da Mocidade:

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O último samba neste grupo é o Salgueiro com a homenagem a seu padroeiro Xangô. Um hino com jeito que a vermelho e branco gosta, para um dos enredos “de autoridade” mais celebrados do Carnaval – Salgueiro falar de Xangô é tão importante quanto a Portela falar de Clara Nunes. A escola da Tijuca estará motivada para defender o samba que flui bem, embora não tenha um ponto óbvio que incendeie o público em geral. Mas a Furiosa certamente vai ficar com esse encargo – e, geralmente, ela dá conta do recado.

Samba do Salgueiro:

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Entrando na seara da crítica bem humorada temos de lembrar a reedição da São Clemente, criticando as próprias escolas de samba, um momento muito propício com a crise de financiamento e prestígio, que nem havia na época da apresentação original. A maior parte dos argumentos da escola de Botafogo feitos em 1990 ainda é válida hoje e o samba possui uma estrutura muito bem resolvida, sendo gostoso de cantar.

O Paraíso do Tuiuti fará uma crítica mais rasgada à política brasileira por meio da história do Bode Ioiô, eleito vereador por Fortaleza no início do século passado. A letra é divertida, como pede o enredo, e ainda que a melodia seja bem menos inspirada que a do histórico samba de 2018, promete sustentar uma apresentação animada, sobretudo porque a escola está muito orgulhosa pelo vice-campeonato que ostenta.

Outros dois sambas ainda apelam explicitamente para a crítica. A Imperatriz não conseguiu atingir a excelência de sua composição de 2018 sobre o Museu Nacional para a história do dinheiro contada em tom bem humorado, seguindo o diapasão da sinopse do enredo. Se a melodia não apresenta nada de muito interessante, a letra tem passagens que podem pegar e um refrão calcado na velha marchinha “Me dá um dinheiro aí”.

Tempos modernos, onde vidas valem menos

Boas ações não representam dividendos

A roda gira pro mais forte, poucos tem a sorte

De virar o jogo que o destino fez

Já o hino da Grande Rio tenta explicitamente apelar para a simpatia, da virada de mesa vergonhosa que protagonizou. O samba meio que pede desculpa ao mesmo tempo em que espeta os seus críticos dizendo Atire a primeira pedra aquele que não erra / Quem nunca se arrependeu do que fez / Na vida todo mundo escorrega. A música tem um quê de marchinha de carnaval, com uma melodia sempre “pra cima”, que não tem nada de muito original. A letra é uma sentença condenatória do chamado “jeitinho brasileiro”. Uma parte da plateia deve comprar.

A Beija-Flor tem um samba de letra correta, dentro do enredo proposto, sobre os seus 70 anos, mas levando em conta a efeméride e os sambões que a Deusa da Passarela levou para a avenida em 2017 e em 2018, fica um gostinho de quero mais, de que podia ser uma nota acima em termos de emoção. Resta ver como a comunidade vai abraçar o seu hino, o que pode transformá-lo bastante na hora em que o portão abrir e a sirene tocar para a escola de Nilópolis.

O samba da Beija-Flor:

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O tom de fábulas infantis, tão comum nos enredos de João Trinta para a Beija-Flor também está presente no samba da Viradouro, que não tem uma melodia de grande destaque, mas o refrão principal fácil de cantar. A vermelho e branco de Niterói é também dessas que costuma pisar forte na Sapucaí e tem feito bons ensaios de rua. Lembrando que ela vem com Paulo Barros e a volta de Ciça na bateria, que, aliás, foi muito bem gravada na faixa.

Os sambas menos inspirados do ano, na minha opinião são os de União da Ilha e Vila Isabel. A primeira tem um enredo muito bom e inventivo sobre um duelo entre Raquel de Queiroz e José de Alencar, dois ilustres escritores cearenses. A letra do samba tem alguns pedaços interessantes, mas a melodia parece estar pouco encaixada. Pode ser que Ito Melodia dê uma melhorada, mas a bela proposta original talvez exigisse uma pesquisa um pouco mais complexa.

A Vila Isabel também vai levar um samba comum, burocrático para a Sapucaí em sua homenagem a Petrópolis e à princesa  Isabel. O samba sofre do mesmo mal que o da Ilha, com passagens em que melodia e letra parecem estar brigando para se entender. Frases de efeito pontuam aqui e ali, mas sem apelar de fato para a emoção.

Deixei por último o MPB-samba-enredo do Império Serrano. A música de Gonzaguinha é excelente, a gravação do samba foi bem feita. Se a parte mais conhecida da letra será certamente muito cantada, “viver e não ter a vergonha de ser feliz, cantar a beleza de ser um eterno aprendiz…”, o miolo da composição é bastante verborrágico e, no ritmo acelerado das baterias para cumprir os 75 minutos obrigatórios, provavelmente não vai ser cantada pela maioria dos componentes. Torço para estar errado!

Vale uma nota a respeito da gravação. Os arranjos estão irregulares: em alguns, a bateria é mais discreta. Na faixa da Portela quase não se ouve tamborim, ao contrário da gravação original feita pela escola antes de ir pra Cidade do Samba fazer o registro para o CD oficial. A faixa da Imperatriz também ficou prejudicada. Na da Tijuca, mal se ouve o puxador. Um pouco mais de capricho não faria mal! Não consigo enender porque o esmero de umas faixas não se reproduz em outras.

O Carnaval 2019 promete bastante diversão e alguns momentos especiais, se isso depender da trilha sonora. Antes do Carnaval, voltaremos a falar dos sambas. Como já disse aqui algumas vezes, o samba-enredo é uma composição que vai amadurecendo na medida em que bateria, intérprete e componentes vão ensaiando. Pode ser que a impressão sobre algumas das obras mude.

Lembrando sempre que toda música é filtrada de formas muito distintas pelas pessoas e, portanto, o que não me seduz pode ter empolgado aos outros. E aí, quais foram as suas impressões?

Para ouvir todos os sambas:

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30 de nov de 2018

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