Sambas da Série A para o Carnaval 2018 são ato de resistência cultural

Clique no link e ouça os sambas em gravações extra-oficiais:

 

Uma corrente de pensamento filosófico defende que, na dor, a poesia lírica se alimenta de inspiração e transforma as questões, dúvidas e angústias em arte. Há muito de lirismo no samba-enredo e a safra da Série A para o Carnaval 2018 reage à barafunda pela qual passa o país em temas e músicas, no mínimo, agradáveis de se ouvir, outras pra lá de inspiradas.

Não apenas por causa da crise econômica, mas pelo relacionamento nebuloso com a Prefeitura de Marcello Crivella, as escolas deram demonstração de força, com temas que remetem a um conjunto de valores: luta, esperança, inspiração e resistência. Com raras exceções, é mais ou menos isso que resume os enredos das escolas que desfilam na sexta e sábado de carnaval.

Se você lê o Mestre Carnaval desde o ano passado, sabe que o samba-enredo não é uma obra fácil de analisar. Nem sequer se pode dizer que esteja pronta quando é registrada no CD oficial. Ela evolui, cresce ou murcha ao longo dos ensaios e sobretudo na avenida. Isso pra dizer que qualquer análise é um ponto de vista pessoal. Melodias tocam as pessoas de formas bem diferentes.

Confira as letras dos sambas: http://www.sambariocarnaval.com/index.php?sambando=sambas2018

Para mim, a safra tem tudo para render uma Série A muito agradável, com temas culturalmente relevantes e alguns trechos de samba bastante inspirados. Entre os sambas que mais saltam aos ouvidos está o da Unidos de Padre Miguel, que fala da bela lenda do Eldorado Submerso no Rio Amazonas na Ilha onde fica Parintins. Embora não seja fácil de cantar, tem uma melodia interessante e descreve bem o tom onírico do enredo. A comunidade da UPM virá com sangue nos olhos depois de ter perdido o título por um infortúnio da porta-bandeira em 2017. Sambão.

Ainda da Amazônia vem o enredo da Renascer de Jacarepaguá, que fala da influência da região na obra do compositor Villa-Lobos e que tem um belo refrão e trechos como esse: ” As bachianas são ubirajaras/Imaginando um coral de sacis/Sob o céu repleto de araras/Vitória rege a orquestra de tupis”.

Outro que chama bastante atenção é o da Viradouro. Com um enredo mais pop sobre loucura e invenção, tem um samba “pra cima”, valente, gostoso de cantar, que tem tudo para contagiar a avenida. Se o chão da escola vier quente, a escola se torna ainda mais forte na disputa pela vaga única no Grupo Especial de 2019.

Há dois momentos de lirismo puro reservados por Acadêmicos do Sossego e Santa Cruz. A primeira concebeu um enredo sobre os rituais (leia-se religiosos) ao longo da história da humanidade. Com uma melodia inspirada e uma letra bem feita, a música chega ao seu ápice no trecho “Brasil, Mais tolerância/ Súplica de esperança/Mensagem de Olorum/Lágrimas de Oxalá nesse chão”.

Já a letra inteira da Santa Cruz parece uma grande oração, bastante adequada ao tema, que é a Esperança. A gravação de trabalho dos compositores foi feita apenas no cavaquinho, o que reforça o tom de lamento. “Quem dera eu escrever o meu futuro/Que o planeta fosse um lugar mais puro/E o amor o combustível para caminhar/Que meu Brasil, se torne o país das maravilhas/Tão belo como cantam as poesias/No verde e branco, é só acreditar”.

Rocinha tem uma letra que descreve o enredo sobre os 110 anos da xilogravura de forma interessante e adequada, simpática, não literal, o que dá graça à obra. A Estácio fala dos mercados populares, com melodia de samba-empolgação, mas que foi gravada no CD em um andamento mais lento para ajudar o público a aprender a letra.

Imperinho, Belford Roxo, Alegria da Zona Sul e Bangu apostam em enredos afros. Destes o mais inspirado é da escola da Tijuca (Olubajé, um Banquete para o Rei) em homenagem ao deus Omolu. O tema por si só soa como provocação ou reafirmação de fé diante de um prefeito cuja religião costuma fazer ataques frontais às religiões de matriz africana. A Alegria lembra de Luíza Mahin, uma guerreira da tribo dos Malês, que participou de uma revolta de escravos na Bahia. E a caçula da Série A vem com A Travessia da Calunga Grande e a Nobreza Negra no Brasil. O refrão do meio em tom menor retratando os percalços dos navios negreiros chama atenção: “Ôôôô calunga é dor/É um clamor por piedade/Ê maré! Que dança/ Ê maré! Balança o tumbeiro/Velho prisioneiro da desigualdade/Ôôôô calunga é dor/É um clamor por piedade/Ê maré! Que dança/Ê maré! Balança o tumbeiro/Oceano inteiro é pranto de saudade”.

Porto da Pedra traz um samba com melodia romântica e agradável para exaltar as rainhas do rádio e a Cubango, lembrando Arthur Bispo do Rosário, outro dos “artistas loucos”, o “rei que bordou o mundo”, como diz a letra do samba.

O CD oficial só deve chegar às lojas em novembro, mas vale comprar ou ter em casa. É uma bela coleção de músicas representativas deste gênero que tantos insistem em decretar a morte diante de um carnaval cada vez mais invadido por axés, funks etc, mas que se recusa a entregar os pontos. Um brinde ao samba-enredo e sua força como retrato da cultura brasileira.

29 de set de 2017

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