Carnaval 2019 mostra o vigor das escolas de samba
Quem esperava uma catástrofe, escolas pobres e esvaziadas queimou a língua. O Carnaval 2019 teve mais público no Sambódromo que o passado, apresentações criativas e sobretudo uma vigorosa mensagem dada de forma coletiva pela maioria das escolas, tanto da Série A como do Grupo Especial: o samba é resistência cultural, sim. Precisou a crise para que as agremiações recuperassem sua veia reivindicadora que tem sido um traço desde os anos 1960. O reconhecimento dos jurados, dando a vitória à Mangueira não poderia ser mais simbólico deste movimento.
Enredos relevantes
O enredo de Leandro Vieira propondo que a história do Brasil passe a reconhecer personagens marginalizados que participaram de lutas importantes arrebatou a avenida. A Mangueira esteve longe de ser uma escola luxuosa. Foi mais conceitual. Profundamente artística e com uma mensagem que a maioria ali estava pronta para absorver. O samba-enredo mangueirense certamente vai ultrapassar a fronteira do carnaval e entrar para o seleto grupo daqueles que são reconhecidos a qualquer tempo.
Mangueira e Tuiuti não combinaram, mas apresentaram discursos complementares. A primeira abordando a história e a vice-campeã de 2018 com uma abordagem crítica sobre as práticas políticas do Brasil, mas feita com a picardia tão cara ao carnaval. Tudo isso contado a partir da inusitada história da eleição do bode Ioiô para vereador de Fortaleza há mais de um século. O estilo colorido, as fantasias criativas como as “coxinhas armadas” estavam presentes e o último carro trazia o bode dando um coice ladeado por celulares cheios de frases típicas de preconceito. Em cima dele, várias pessoas que são resistência como o deputado federal David Miranda. Pena que problemas com alegorias e evolução tenham tirado a escola de São Cristóvão do Desfile das Campeãs.
Completa essa lógica, a apresentação da São Clemente, que se reencontrou com o estilo que a consagrou, o bom humor e a crítica inteligente, voltada esse ano ao próprio univeso das escolas de samba. A comissão de frente simulando uma reunião de cartolas da Liga Independente das Escolas de Samba e suas viradas de mesa vai ficar na memória, bem mais que a dos emojis da Grande Rio, que foi premiada. A estética HQ de Jorge Silveira contribuiu para a leveza. Foi de todas as 14 escolas, a mais mal julgada. Não merecia a antepenúltima posição.
Raízes culturais
Outras escolas bem colocadas como Portela e Salgueiro não tiveram condição de exibir o luxo habitual com que estão acostumados os torcedores. Mesmo assim, trouxeram enredos culturalmente relevantes. Rosa Magalhães fez na Portela um passeio pelas raízes culturais de Clara Nunes, a homenageada. Para explicar por que Clara Nunes se encantou pela Portela e seu universo era preciso entender que universo era esse, a Madureira multicultural, variada. Emocionante a comissão de frente em honra a Iansã, assim como a salgueirense em homenagem a Xangô. O fato de terem sido penalizadas pelo júri mostra uma tendência meio infantil de esperar sempre um espetáculo no padrão Paulo Barros. Não deveria ser assim, não pode ser assim.
O carnaval é democrático. Permite discursos divergentes. Enquanto a Mangueira exibiu o monumento dos Bandeirantes feito por Victor Brecheret pichado como protesto à participação deles no extermínio de índios, a Grande Rio passava na avenida com um carro que classificava o grafite e a pichação como exemplo de “pecados” cometidos por quem não tem moral para julgar os outros.
Pão sacro
A Unidos da Tijuca preferiu um tom “sacro”, na definição do próprio carnavalesco, para sua história do pão e seu clamor por mais solidariedade e empatia no mundo. A escola disputou uma vaga nas Campeãs até o último quesito, mas acabou se dando mal em samba-enredo, punida pelos jurados porque o seu hino, embora melodioso, refletia na letra a proposta um tanto confusa do enredo a se considerar a sinopse.
Até a Imperatriz, que normalmente passa ao largo das questões políticas, nos últimos dois carnavais vinha trazendo mensagens relevantes e este ano enveredou de vez ao contar a história do dinheiro. O fracasso de seu desfile se deu mais pela mudança radical de estética e problemas de evolução e harmonia.
Problemas de identidade
Outras duas escolas vivem problemas de identidade que precisam ser resolvidos logo. Uma é a União da Ilha. Seu enredo sobre o Ceará teve uma estética muito boa, acima da média até para o padrão das escolas esse ano. Carros grandes, caprichados. Só que precisa temperar essa nova roupagem com aquela com que o público se acostumou: a Ilha alegre, de sambas bons, fáeeis de cantar, componentes soltos. Pode ter um pouco de nostalgia nisso, é verdade. O julgamento hoje é muito cheio de nove horas. Mas a gente sempre fica com a sensação de que faltou algo quando acaba a apresentação.
Ao lado da tricolor, a grande decepção do ano, a Beija-Flor. Uma escola que resolve falar de si mesma e não sabe como tem um problema de identidade a resolver. A teatralização excessiva dos carros alegóricos interagindo com a pista, que ocorreu também na Unidos da Tijuca, prejudica a evolução. As duas escolas perderam pontos aí. Uma história vitoriosa como a da Deusa da Passarela não merecia este tratamento confuso. Quem são os baluartes da Beija-Flor? Quem fez a história bem sucedida da escola nesses 70 anos de vida? Quem viu o desfile não entendeu. Homenagens tímidas em fotos numa saia de carro alegórico é muito pouco!
Primas ricas
Já no caso de Vila e Viradouro, fizeram o que delas se esperava. Muito luxo e desfiles competentes. Ambas bastante parelhas e com enredos com linhas narrativas pouco sólidas. A Vila levou a pior por ter estourado o tempo em 1 minuto. A Mocidade, a outra que vai estar no sábado, ficou feliz da vida por estar pelo terceiro ano seguido no Sábado das Campeãs, mostrando uma regularidade inédita nos últimos tempos. A Mocidade está em ascensão como escola. Seus torcedores só se ressentiram de um pouco mais de sintonia com o momento. A reflexão genérica sobre o tempo pareceu um tanto deslocada num ano em que até o rebaixado Império Serrano fez críticas.
Por fim, e o Império? Ah, o Império… Essa coluna avisou lá atrás no meio do ano passado, quando a escola tomou a decisão de usar uma música de Gonzaguinha como hino. A ideia, mais do que arriscada do ponto de vista estratégico de desfile, era uma afronta. Sobretudo para uma escola que tem em sua galeria sambas-enredo antológicos. Não deu outra! A música tem trechos difíceis de se cantar num cortejo dançante. A ideia do enredo se mostrou confusa. A falta de recursos contribuiu, claro, mas o Reizinho de Madureira não merecia virar laboratório de experiências num ano em que competiria em desvantagem.
De qualquer forma, precisamos reconhecer: as escolas de samba estão vivas. Muito vivas. E conseguiram provar isso para o Brasil todo. Goste ou não da mensagem, a maioria dos brasileiros conectados à opinião pública soube o que aconteceu na Sapucaí neste início de março.
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