Escolas do Grupo Especial dão prova de força do gênero samba-enredo
Poucas vezes o termo samba-enredo foi tão pertinente como nesta temporada em que nos aproximamos do Carnaval 2018. A safra de hinos das escolas de samba do Grupo Especial prova que diante de enredos bons, pertinentes, o gênero ainda tem muita lenha para queimar.
Ouça os sambas no Spotify: https://open.spotify.com/album/2bZ1XFfIuq58kEQnKcDZgg
Normalmente, o CD com os sambas era lançado em uma festa perto ou na véspera do Dia Nacional do Samba. Mas em tempos de streaming, as faixas oficiais começaram a pipocar no YouTube logo que as gravações foram mixadas e as faixas chegaram aos serviços como Spotify e Deezer antes das lojas. E o que elas revelam é um conjunto potente de canções dedicadas à cultura brasileira, com variedade, crítica, elegias, coragem e boas doses de inspiração.
O fator mais interessante do Carnaval 2018 foi a volta da crítica, que andava tão ausente do samba-enredo. E foi um retorno contundente representado por dois sambas primorosos: o da Beija-Flor, sobre a desigualdade social do Brasil, e o Paraíso do Tuiuti com uma reflexão a respeito da situação do negro: a abolição entregou mesmo a liberdade se não deu oportunidade de ascensão social?
OH PÁTRIA AMADA, POR ONDE ANDARÁS?
SEUS FILHOS JÁ NÃO AGUENTAM MAIS!
VOCÊ QUE NÃO SOUBE CUIDAR
VOCÊ QUE NEGOU O AMOR
VEM APRENDER NA BEIJA-FLOR
Tuiuti:
Meu Deus! Meu Deus!
Seu eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social
A situação do país também foi alvo de um dos sambas mais badalados, o da Mocidade. Se, em 2017, Alá recebeu Xangô em Marrocos, desta vez o Brasil recebeu os deuses hindus. Mais que constatar os traços culturais herdados, o samba é um forte apelo de paz em tom de lamento, a despeito dos exageros de interpretação de Wander Pires.
Clama o meu país
E a Flor de Lótus símbolo da paz
E a Vitória Régia da mesma raiz
Pela tolerância para os desiguais
Tolerância também é o tema do samba da Portela, que conta a saga dos judeus expulsos de Pernambuco nos tempos da Inquisição e que foram para a América do Norte e participaram da fundação de Nova York, uma espécie de capital do mundo. O samba-enredo tem uma estrutura de cordel e referências ao baião que deixam a música com ritmo irresisitível:
Entra criança, homem, muié
No abraço dessa terra só não fica quem não quer
É legado, É união, É presente, Igualdade
É “Noviórque” Pedestal da liberdade
Neste ano da consciência sobrou até um recado direto pro bispo Crivella que se dedicou a dificultar a vida das escolas de samba. A Mangueira avisa: vai ter carnaval com ou sem dinheiro. A melodia é envolvente; deve fazer sucesso e servir ao desfile.
Se faltar fantasia alegria há de sobrar
Bate na lata pro povo sambar
Eu sou Mangueira meu senhor, não me leve a mal
Pecado é não brincar o Carnaval!
Além das melodias aguerridas dos sambas “críticos”, há um grupo de hinos “culturais” com resultados muito bons: a Imperatriz e os 200 anos do Museu Nacional e a São Clemente cantando a Escola de Belas Artes de uma forma “academicamente popular”.
O Salgueiro fez uma espécie de sequência do seu conhecido enredo sobre a cultura negra de 2007, Candaces. Apesar da polêmica na final, o vencedor foi muito bem gravado e deve render notas melhores no quesito que em 2017.
A Ilha não tem um dos sambas badalados do ano e a estrutura de sobrevoo pelo tema, no caso a culinária brasileira e sua variedade, é convencional. Mas acho agradável de ouvir e a escola está feliz com a escolha, o que significa um impulso na harmonia, porque os componentes cantam mais os sambas que curtem.
A letra do samba do Império Serrano tem trechos muito inteligentes ao fazer um paralelo entre a história da China e a sua própria. A Serrinha adora uma auto-referência, assim como a Portela.
“Confio” No meu verde e branco a seguir
“Conceda” O caminho onde eu possa reinar
Império de tradições imponentes
Nos “oriente” a desvendar
No rol das homenagens temos a Grande Rio com sua “marchinha” de carnaval para Chacrinha e a Tijuca cantando Miguel Falabella com a grife de Mart’Nalia entre os compositores. Os sambas são divertidos como faixas musicais. Já o da Vila Isabel sobre invenções e a ciência mistura estilos e tem resultado discreto.
Nunca é demais ressaltar que samba-erendo acontece mesmo na avenida. Uma faixa bem gravada no CD pode murchar na avenida e vice-versa. De qualquer forma, o gênero samba-enredo prova que não tem nada de decadente. Se as escolas conseguissem divulgar suas músicas de forma mais profissional, alguns deles poderiam virar hits como já aconteceu no passado.
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