Escolas de samba percorrem em enredos a religiosidade do brasileiro

O fato de Corpus Christi ser um feriado nacional nos remete ao fato de que este é um país cristão. Mais que isso, um lugar onde o religioso sempre ocupou lugar de destaque na vida das pessoas. A fusão cultural entre brancos, negros, índios nos legou uma tradição cultural de mistura, de sincretismo.

As escolas de samba, que começaram falando de fatos da história do Brasil, a partir dos anos 1960 passaram a abordar também aspectos e personagens e lendas da cultura negra ou da indígena. Foi quando a religiosidade, antes apenas latente, chegou de maneira formal aos enredos. Sambas como o da Unidos da Tijuca em 1975 sobre A Magia Africana no Brasil e seus Mistérios.

A relação com a Igreja Católica foi bem mais difícil. Havia um arcebispo no Rio, dom Eugênio Salles, que era linha dura com as escolas de samba. A Arquidiocese fincou pé com Joãosinho Trinta no desfile de 1989. Foi à Justiça para impedir a alegoria. A solução encontrada foi trazer o Cristo Redentor do abre-alas recoberto em plástico. Bastante tempo depois, no ano 2000, o carnavalesco da Unidos da Tijuca foi parar na delegacia de polícia porque uma das alegorias trazia uma imagem de Nossa Senhora.

Com o tempo, a Igreja percebeu que era contraproducente e antipático aparecer como censora numa época de liberdade de expressão e tornou-se menos opressiva. Todo enredo com algum viés religioso rendia uma visita de um representante da Arquidiocese aos barracões para verificar qual o tratamento dado às imagens católicas. Ainda assim, em 2017, “sugeriu” à Mangueira que não voltasse a levar para a avenida no Desfile das Campeãs um tripé que trazia a imagem de Cristo sincretizada à de Oxalá – o problema foi exatamente este, apesar de na Bahia a Igreja do Senhor do Bonfim ser palco de um dos rituais mais interessantes de sincretismo no Brasil.

Vamos relembrar desfiles que trataram da temática da religiosidade, alguns muito bem sucedidos, outros nem tanto:

Padre Miguel, Olhai Por Nós – Mocidade 1995

Na fase áurea da Mocidade nos anos 1990, Renato Lage abordou todos os aspectos da religiosidade do brasileiro neste enredo, inclusive o catolicismo. Como as pessoas tinham fresco na mente o episódio com a Beija-Flor, houve certa tensão para saber se a Igreja ia tentar impedir o desfile. Mas tudo correu dentro do esperado e a escola acabou aquele Carnaval em 4º lugar.

Só Com a Ajuda do Santo – Mangueira 2017

Nesta brilhante concepção de Leandro Vieira, a verde e rosa falou do quanto o brasileiro confia em seus santos e rituais no cotidiano, seja para desejar sorte, pedir uma graça, etc. Tudo junto e misturado! Esse foi o desfile do Cristo-Oxalá.

Oferendas – Unidos da Ponte 1984

Este enredo sobre todas as comidas de “santos” ou orixás produziu um clássico do samba-enredo. A Ponte era uma escola pequena, ficou mal colocada, mas a música nunca saiu dos ouvidos dos amantes do Carnaval. Os mais novos, agora,  terão a chance de conhecê-lo. A Ponte desfilará na Série A no Carnaval 2019 e resolveu reeditar enredo e samba.

Terra dos Papagaios … Navegar foi preciso  – Unidos da Tijuca 2000

O ano 2000 teve um carnaval temático. Todas as escolas abordaram algum aspecto dos 500 anos do descobrimento do Brasil. A Tijuca escolheu falar das grandes navegações que trouxeram os portugueses e a polêmica com a Igreja se deu por conta de um carro que representava a Primeira Missa.

Xingu – Imperatriz 2017

A Imperatriz aprontou um karup na avenida, um dos rituais indígenas mais icônicos, dentro de um enredo sobre o Parque Nacional do Xingu que encheu de fúria a bancada ruralista no Congresso.

Salve Jorge! O Guerreiro na Fé – Estácio 2016

A Estácio trouxe a história de São Jorge, sua vida e martírio na Turquia e o culto a um dos santos mais populares do Brasil, sincretizado com os orixás Ogum, na Umbanda, e Oxossi, na Bahia.

Os Santos Que a África Não Viu – Grande Rio 1994

A Grande Rio ainda era uma escola inexperiente no Grupo Especial quando apresentou este enredo para contar a história da Umbanda, religião criada pelo negros no Brasil. O uso da palavra “santos” no título fez circular o boato de que a escola traria várias imagens sacras, o que, naquela época, era tido como afronta. Representantes da Igreja foram ao barracão, mas não encontraram motivo para implicar com o desfile.

A lenda da criação do mundo na tradição Nagô – Beija-Flor 1978

Que tal uma espécie de livro dos Gênesis na tradição negra, com as lendas e divindades africanas? Esta foi a história que a Beija-Flor levou para a avenida em 1978, ano em que obteve o tricampeonato em uma Sapucaí que ainda era de arquibancadas móveis.

E o Povo na rua cantando é feito uma festa um ritual – Portela 2012

A Portela lutava contra sua divisão interna em 2012, mas conseguiu escolher um samba que já entrou para a antologia do gênero. O ritmo acelerado do refrão “Madureira sobe o Pelô” prenunciava uma nova incursão da escola na tradição baiana, cultural e religiosa, que tanto moldou nosso povo. Mesmo com pouquíssimo investimento em barracão, o samba levou a escola ao 6º lugar!

30 de maio de 2018

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