Fazendo um desfile sobre a nostalgia, Caprichosos deixou todo mundo feliz

Desfile da Caprichosos de Pilares em 1985 – Foto: Ricardo Leoni / Wikimedia

Um dos assuntos no mundo do samba esta semana foi o anúncio de que a Caprichosos de Pilares não vai desfilar em 2019 e será rebaixada de novo. Imersa em brigas internas, a escola sequer apresentou enredo. Ano que vem estará no Grupo de Acesso E, uma espécie de purgatório das escolas de samba, que nem sequer recebe subvenção oficial. Quem frequenta há pouco tempo a Sapucaí não faz ideia do quanto essa escola já foi querida e importante.

Em 1985, o Sambódromo chegava a seu segundo ano e a Caprichosos de Pilares em processo de ascensão: faria seu terceiro desfile consecutivo na elite do Carnaval com um enredo dentro do espírito brincalhão que a caracterizou. E Por Falar Em Saudade, do carnavalesco e professor de matemática Luiz Fernando Reis, era uma coleção de lembranças a respeito de tradições cariocas e brasileiras que estavam caindo em desuso.

Assista ao desfile da Caprichosos no Carnaval de 1985:

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O mote simples dava abertura para sátiras e críticas em diversas dimensões de temas, coisas e hábitos que sumiram do cotidiano por diversas razões. Desde a saudade de votar para presidente (Tancredo Neves ainda estava marcado para assumir como primeiro presidente civil depois da Ditadura Militar), do leite em garrafas que não era batizado com água para render mais, até gozação com o time do Botafogo e a seleção brasileira, que enfrentavam, na época, uma seca de títulos.

Ostentando o samba mais popular daquele ano, bastante marcheado, fácil de cantar e com refrão irresistível (Tem bum bum de fora pra chuchu, qualquer dia é todo mundo nu) iniciou sua apresentação às 10h da manhã da terça de carnaval, debaixo de um calor infernal.

A versão oficial do samba-enredo de 1985 no LP das escolas de samba:

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Luiz Fernando Reis concebeu fantasias leves, descontraídas, essencialmente carnavalescas e também muito caprichadas, como pede o nome da escola. A comissão de frente veio fantasiada de amoladores de faca, que já estavam rareando nas ruas àquela época e hoje são muito mais difíceis de se encontrar. Atrás deles, um enorme letreiro multicolorido com a palavra Saudade fazia o desfile entrar num clima quase de história em quadrinhos.

Logo depois vieram as saudades das peças de roupas que haviam caído de moda: mulheres desfilaram de espartilho e os homens de cuecas samba-canção, como num blocão de carnaval. Tudo muito divertido e simples!

Um tripé homenageava os bondes, que foram o principal meio de transporte coletivo no Rio antigo, seguido de uma ala com os condutores e os fotógrafos lambe-lambe, que ficavam nas praças para tirar fotos das famílias passeando.

A escola entrou cantando muito o samba e empolgando o público que ficou até aquela hora na arquibancada enquanto a direção de harmonia, bombeiros e policiais militares distribuiam água e pedras de gelo para os componentes suportarem o calor. Os camarotes também entraram na onda de solidariedade e despejavam garrafas de água sobre os componentes.

A Taça Jules Rimet, que o Brasil ganhou na Copa do México em 1970, derretida por ladrões que invadiram a sede da CBF – Foto: Anibal Philot / Wikimedia

As alegorias eram bem acabadas e seguiam o tom brincalhão das fantasias. Uma das mais famosas era o conjunto de bumbuns das passistas com roupas cada vez menores, empinados para cima numa estética que remetia às caricaturas de Lan, o cartunista famoso por retratar as curvas das mulheres brasileiras. Elas faziam parte do último setor, dedicado à saudade dos antigos carnavais. Mas o carro quebrou e só passou na avenida rebocado depois.

A Caprichosos abusou dos tripés, que adicionavam lembranças não traduzidas em fantasias e que ajudavam a ilustrar o setor, como na parte dedicada à política. Eles citaram os comícios da Central, antes de 1964, seguidos de alas fantasiadas de urnas e títulos eleitorais seguidos por uma alegoria que trazia reprodução do Congresso Nacional e um sol nascente.

Croquis da alegoria que celebrava a “Saudade dos Civis no Poder”; no Carnaval de 1985, as escolas ainda precisavam submeter as alegorias ao serviço de Censura, nos últimos dias do governo militar de Figueiredo. Fonte: Wikimedia

Apesar da boa reação popular, o desfile da escola teve outros problemas, como a quebra do Carro do Teatro de Revistas, que atrasou um pouco a evolução e fez com que a bateria, vestida com traje de banda, optasse por não parar no segundo boxe, ao lado do setor 9.

Nessa época, a Praça da Apoteose ainda era efetivamente um largo e seus 4 mil componentes desembocaram nela e continuaram fazendo uma grande festa com jeito daqueles blocos que a gente encontra hoje desfilando no Aterro. Quando a bateria chegou à Praça ficou uma passagem inteira do samba muda, deixando a escola cantando à capela e levando a plateia ao delírio. Virou um grande baile de Carnaval a céu aberto e até o setor 9, que já estava bem vazio, entrou na dança.

A Caprichosos ganhou naquele ano o Estandarte de Ouro de Melhor Escola e também como Revelação. Na apuração oficial, ficou no 5º lugar, atrás da campeã Mocidade, da Beija-Flor e seu confuso enredo, de Vila Isabel e Portela. Com exceção da Mocidade, nenhuma delas chegou perto de obter a comunicação com o povão que esse desfile conseguiu. As pessoas se divertiam tanto que começaram a decorar e responder até aos cacos de Carlinhos de Pilares, um dos intérpretes mais divertidos e competentes da avenida.

A Caprichosos dessa época era conhecida também como Fábrica de Músicos. Passaram por lá para se aperfeiçoar em ritmo muita gente famosa como Dudu Nobre, Andrezinho da Mocidade, Anderson Leonardo, Xande de Pilares (Grupo Revelação), Sandra de Sá, Simone, Mestre Paulinho Botelho (Vila Isabel), Mestre Mug (Vila Isabel), entre outros.

Em 2015, a Caprichosos fez um ótimo desfile, sob a batuta de Leandro Vieira. Por causa disso mesmo, Leandro foi convidado para fazer a Mangueira no ano seguinte e virou um dos maiores talentos do carnaval atual. E Pilares fez um desfile caótico, caindo da Série A para o Acesso B e daí não parou mais. Apesar da perspectiva sombria, tomara que a escola se reencontre e não parafraseie o seu maior sucesso: “Velhos tempos que não voltam mais”.

As fotos postadas aqui seguem a licença Creative Commons 2.0. 

25 de jan de 2019

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