Afinal qual o limite do samba-enredo como gênero carnavalesco?

Há alguns dias, o mundo do samba ficou em choque. O Império Serrano anunciou seu enredo para o Carnaval 2019 e, de uma só tacada, informou que não haveria disputa de samba-enredo. Nem encomenda, como fez o Tuiuti em 2018. A trilha do desfile já estava decidida: “O que é, o que é”, de Gonzaguinha. A gravação original, postada no início deste texto mostra: ainda que seja um samba e gire em torno de um tema, não é um samba-enredo. Não tem estrutra, refrões, etc.

A ideia do carnavalesco Paulo Menezes gerou estranheza, ainda mais numa escola que é dona de alguns dos maiores exemplares do gênero samba-enredo e tem, segundo muitos, o maior compositor de todos os tempos: Silas de Oliveira. Como logo essa escola resolve desfilar com uma música que não foi feita para o desfile? Não é exatamente a primeira vez que isso acontece: em 2015, a Viradouro trouxe uma mistura de dois sambas de Luis Carlos da Vila. Nunca foram de enredo, mas tinham estrutura de samba cantado na avenida e a Viradouro ganhou nota máxima no quesito naquele ano. Em 2018, o grande Império recebeu em samba dois 9,8, um 9,9 e um 10, somando 29,7 pontos, um dos 3 piores desempenhos do quesito. Faz sentido, então?

Eis a gravação da Viradouro de 2015:

Paulo Menezes, que participou com Paulo Barros do Carnaval vitorioso da Portela em 2017 e fizeram juntos a Vila em 2018, divulgou uma espécie de justificativa do enredo – ainda não é sinopse.

“E a Vida?

e a Vida o que é diga lá, meu irmão?”

Alguma vez você parou para se perguntar sobre isso? Acreditamos que sim.

Seria a Vida somente existir? Seria ela somente amar, trabalhar, criar, acumular e vencer ou seria somente sofrimento e dor?

Seria alegria ou lamento? Seria luta e prazer?

Seria tudo isso junto ou não seria nada disso?

A pergunta nos pega de surpresa. Nos faz parar para pensar, nos obriga a refletir.

Seria a Vida uma aventura? Se for, sinta, ame, ria, chore, brinque, ganhe, perca, tropece, mas levante-se e siga em frente. Sempre!

E o que você faz da sua Vida? Pois ela é você quem faz, as decisões são suas. É o seu querer que define o que você será!

Faça dela um frenesi, uma ilusão, um sonho, mas transforme tudo isso em realidade, sem medos! Afinal, ela pode tomar diferentes rumos, mas é você que escolhe como vai encará-los.

Agora tomem um tempo para pensar o que é a Vida para vocês, pois para nós, o Império Serrano, é nunca perder a alegria,

é renovar a fé no mundo e nas pessoas.

Para nós, viver é cantar, cantar, cantar … e nunca ter vergonha de ser feliz!

Para nós a Vida é bonita, é bonita e é bonita!

Paulo Menezes

A decisão da direção do Império de acolher o enredo de Menezes já causou duas baixas: o vice-presidente e o diretor de Carnaval se desligaram da escola e no meio dos compositores de samba, a novidade é vista com desconfiança.

Clássico do Império Serrano de 1949, Exaltação a Tiradentes:

É verdade, o Império sabe ser a bola da vez! Afinal foi o último colocado e só não caiu por causa de virada de mesa para beneficiar a Grande Rio. A Viradouro está voltando para o Grupo Especial mais organizada que em 2015. A briga do Império é lá embaixo. Tuiuti sabia disso em 2018, investiu num samba sob encomenda, com resultados espetaculares. O raciocínio é mais ou menos esse.

Império Serrano em 1951, sobre os 61 Anos da República

Mas a simbologia é muito forte! O Império Serrano renunciar ao samba-enredo é mais ou menos como o Flamengo ou o Corinthians decidirem se retirar do futebol para se dedicarem a outras modalidades. Ou um restaurante italiano decidir que não vai servir massas. Até onde vai a ousadia?

Império Serrano em 1965, Os Cinco Bailes da História do Rio, obra de Silas de Oliveira, Ivone Lara e Bacalhau:

O samba-enredo foi introduzido pelas escolas aos poucos. No começo, se cantavam três ou quatro sambas, que chegavam na avenida só com os refrões conhecidos. O resto se improvisava na hora. Só nos anos 1940 a prática de cantar um samba identificado com o tema do desfile virou o padrão.

Império Serrano em 1972 foi campeão com Taí, Carmen Miranda:

Ao longo das décadas, o samba-enredo foi se transformando: nos anos 1960 eram longos, melodiosos; nos anos 1970 iniciaram processo que os tornou mais fáceis de cantar, com refrões mais fortes. A popularidade cresceu muito e atingiu o auge nos anos 1980, quando eram a música de carnaval por excelência e o LP com as músicas das principais escolas de samba do Rio hits nas rádios e nas lojas.

A partir dos anos 1990, a concorrência feroz do axé music acabou colocando o samba de volta na casinha de “música para desfile de escola de samba”.

Império Serrano ganha em 1982 com Bum, Bum, Paticumbum, Prugurundum, uma crítica às Super-escolas de Samba S/A.

O século 21 vem provando que o gênero tem fôlego do ponto de vista qualitativo. Melodias fortes, menos velozes que na década anterior. Em 2018, tivemos ainda a volta da crítica como elemento marcante. Ou seja, está se reinventando, ainda que sem grande atenção da mídia, que segue tocando funk, axé e até sertanejo mesmo no carnaval. Não seria a hora de dar apoio ao gênero em vez de declará-lo menos importante, o patinho-feio do grande espetáculo da Sapucaí?

Em 1996, o Império Serrano emocionou a Sapucaí com Verás Que Um Filho Teu Não Foge à Luta, homenagem a Betinho e sua luta contra a fome:

Afinal, não é pra ouvir samba e bateria que as pessoas vão ao Sambódromo? Por mais que famosos e as alegorias chamem atenção, o samba-enredo é fundamental pra identidade desta manifestação cultural relevante do país.

Império Serrano 2006: Império do Divino 

Pior: o tiro pode sair pela culatra. Para servir de trilha sonora para um desfile de 3 mil pessoas que precisa ser completado em, no máximo 75 minutos, o andamento da música terá de ser mexido. Têm circulado pela Internet versões da música O que é, o que é?  com batimento (bpm) de samba-enredo.  Ouça esta, por exemplo:

Na minha opinião, ela só é agradável de se cantar no refrão. O resto do tempo todo, o jogo de palavras inteligente da canção se perde por causa do andamento que mais parece frevo a samba. Os componentes provavelmente vão embromar o canto e descontar no refrão, o que não deve ajudar a escola em evolução, harmonia e samba.

O samba-enredo é um gênero maleável que passa por momentos mais e outros menos  inspirados, mas culpá-lo pela popularidade menor das escolas hoje em relação ao que era nos anos 1980 e 1990, por exemplo, é injusto. As agremiações têm de valorizar seus fundamentos e não atacá-los em nome da competição.

Para encerrar, o samba-enredo de 2016 do Império, que homenageou o centenário de nascimento de Silas de Oliveira:

11 de maio de 2018

COMENTÁRIOS